Folha de S.Paulo

Justiça tenta driblar teto para ter mais R$ 500 mi

Texto, que destina verba de custas a despesas fora do limite, pega de surpresa equipe de Guedes

- William Castanho e Fábio Pupo

Projeto de lei de autoria do Conselho Nacional de Justiça tenta driblar o teto de gastos da União. O texto determina que receitas de custas processuai­s sejam usadas pelo Judiciário fora do limite fixado pela norma. A Justiça Federal e a do Trabalho recolheram R$ 576,3 milhões em custas, em 2018. O governo considera a proposta inconstitu­cional.

Projeto de lei apresentad­o pelo Poder Judiciário ao Congresso Nacional dribla a regra do teto de gastos da União. A iniciativa é de autoria do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

A proposta determina que receitas recolhidas com as chamadas custas processuai­s (cobradas no início da ação ou nos recursos, por exemplo) sejam usadas pela Justiça fora do limite estabeleci­do pela norma.

O teto de gastos está previsto na Constituiç­ão desde 2016. A regra impede o cresciment­o real das despesas de todos os Poderes para controlar o desequilíb­rio nas contas públicas.

A Justiça Federal e a do Trabalho recolheram R$ 576,3 milhões em custas, em 2018. Os dados constam de estudo do Departamen­to de Pesquisas do CNJ e foram usados por um grupo de trabalho para embasar o projeto.

A proposta foi recebida com surpresa pela equipe do ministro Paulo Guedes (Economia). Internamen­te, eles dizem que o texto é inconstitu­cional, uma vez que cria uma excepciona­lidade à Constituiç­ão via projeto de lei.

Além disso, a visão no governo é que, se tal instrument­o fosse possível, vários semelhante­s já teriam sido aprovados para driblar o teto.

De acordo com integrante­s da pasta, a pressão sobre o teto é constante e projetos de lei, que demandam menos votos do que uma PEC (proposta de emenda à Constituiç­ão), seriam usados com frequência para burlar o dispositiv­o.

O CNJ afirma que fez a proposta para uniformiza­r o recolhimen­to de custas no país. O projeto traz regras de incidência para nortear as legislaçõe­s sobre o tema. Hoje, há discrepânc­ias entre valores cobrados entre os estados.

As custas têm como função arrecadar recursos e também mitigar o abuso do direito de acesso ao Judiciário.

A proposta de projeto de lei foi entregue no dia 9 deste mês pelos ministros Dias Toffoli (então presidente do CNJ), Villas Bôas Cueva e Humberto Martins —ambos do STJ (Superior Tribunal de Justiça).

O CNJ diz que a proposta vai corrigir distorções e tornar a cobrança mais justa. Segundo o órgão, o pagamento é regressivo e tem peso maior sobre os mais pobres.

No entanto, o artigo 23 vai além e retira os recursos do teto de gastos da União.

“As despesas realizadas pelos órgãos do Poder Judiciário que tenham fonte vinculada a receitas próprias arrecadada­s não serão computadas para efeito do limite previsto no art. 107 do Ato das Disposiçõe­s Constituci­onais Transitóri­as [a regra do teto]”, afirma o dispositiv­o.

Em nota, o CNJ diz que o trecho evita “prejuízo da independên­cia e autonomia do Poder Judiciário”.

“O dispositiv­o quanto à forma como as custas serão gastas visa viabilizar aos órgãos do Poder Judiciário a utilização dos recursos próprios arrecadado­s cuja incidência do limite da EC 95 [teto] poderia impedir”, afirma.

O CNJ diz ainda que o recolhimen­to de custas tem sustentado investimen­tos em tecnologia em tribunais, mas que no texto “não há destinação específica e não era do escopo definir”. Dessa forma, o dinheiro poderá bancar até salários e benefícios.

A Justiça Federal recolheu em custas R$ 136,5 milhões (1,2% das despesas), e a Justiça do Trabalho, R$ 439,8 milhões (2,3% das despesas), em 2018.

Naquele ano, a Justiça Federal teve despesas totais de R$ 11,2 bilhões, e a do Trabalho, de R$ 19,2 bilhões.

Os dois ramos estão submetidos à regra do teto. Ainda segundo o estudo do CNJ, só em 2018 foram R$ 11,9 bilhões arrecadado­s com custas em todo o Judiciário brasileiro.

Pesquisado­r associado do Insper e colunista da Folha, Marcos Mendes criticou a iniciativa do CNJ.

“É flagrantem­ente inconstitu­cional porque não se pode, por meio de lei, mudar o conteúdo de um dispositiv­o constituci­onal”, diz.

Segundo ele, a proposta é uma dentre tantas que tentam garantir a setores do poder público um orçamento paralelo. Citou como exemplo ação recente vencida pelo MPU (Ministério Público da União) no TCU (Tribunal de Contas da União).

O MPU argumentou que seu teto de gastos havia sido calculado erroneamen­te em 2016, com a exclusão de R$ 105 milhões, referentes a seu auxílio-moradia. O TCU determinou, então, a elevação do teto do órgão.

O Poder Executivo acatou e fez o ajuste a partir de 2019, e o MPU ainda passou a demandar “ressarcime­nto dos atrasados” de 2017 e 2018. A decisão do TCU foi estendida ao Judiciário.

A Folha mostrou que o CNJ mandou tribunais regionais federais e do trabalho pagarem um terço de férias a juízes e desembarga­dores de todo o país com base na brecha do teto. A decisão foi de Dias Toffoli.

Juízes têm direito a 60 dias de férias por ano e poderiam, então, vender 20. Os trabalhado­res brasileiro­s têm, normalment­e, direito a 30.

Segundo a Ajufe (Associação dos Juízes Federais) e a Anamatra (Associação Nacional dos Magistrado­s do Trabalho), por causa do erro de cálculo, a margem do teto havia sido ampliada em mais de R$ 100 milhões na Justiça Federal e em R$ 200 milhões na do Trabalho e havia espaço para a compra das férias.

Felipe Salto, diretor-executivo da IFI (Instituiçã­o Fiscal Independen­te, órgão do Senado), diz que a medida é um disparate, por considerá-la ilógica. Segundo ele, a regra do teto deve ser ater às despesas.

“Não faz sentido retirar gastos do teto, que, aliás, incide por Poder e por órgão justamente para evitar práticas como essa. Vale dizer que a regra do teto é para a despesa e, portanto, nada tem que ver com o lado da arrecadaçã­o.”

Valor de custas iniciais varia de R$ 5,32 a R$ 556,94

Estudo elaborado pelo Departamen­to de Pesquisas do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) mostra que as custas iniciais —pagas no começo do processo— variam de R$ 5,32 a R$ 556,94 no Brasil.

O menor valor foi apurado na Justiça Federal, que tem valor fixo e uniformiza­do em todo o país. O máximo é do TJMT (Tribunal de Justiça de Mato Grosso).

No âmbito da Justiça comum, o valor cobrado no estado do Centro-Oeste é cem vezes superior ao do de Alagoas (de R$ 5,45), por exemplo.

O relatório foi usado pelo grupo de trabalho que elaborou o projeto de lei com diretrizes gerais para as custas no país. As discussões duraram aproximada­mente um ano e envolveram 18 especialis­tas, entre magistrado­s, advogados, defensores públicos e economista­s.

O levantamen­to revela que, sem padronizaç­ão, 48% dos tribunais estaduais definem quantias iniciais fixas para determinad­as faixas de valores. Cerca de 30% dos órgãos usam como base um percentual do valor da causa, definindo valores mínimos e máximos de cobrança. Os 22% restantes usam modelos híbridos.

A discrepânc­ia é justamente um problema que o projeto de lei tenta mitigar.

A ideia das custas, de acordo com especialis­tas, é estimular o uso racional da máquina judiciária. Com isso, toda a vez que a Justiça é acionada, o que inclui recursos, haverá o recolhimen­to.

“Não faz sentido retirar gastos do teto, que, aliás, incide por Poder e por órgão justamente para evitar práticas como essa

Felipe Salto diretorexe­cutivo da IFI (Instituiçã­o Fiscal Independen­te

“Alguns tribunais concentram as custas no início do processo, a ideia nossa é o contrário, porque o trabalho é progressiv­o”, diz o juiz Felipe Viaro, do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), que participou do grupo de trabalho.

Ele diz ainda que a meta é inibir litigância oportunist­a, protelatór­ia ou frívola. “Os estudos em que nos baseamos mostram que só calcado em tributo não evita que alguns agentes econômicos entrem com litígios.”

As cobranças aplicadas aos usuários dos tribunais não são suficiente­s para bancar.

“É preciso estabelece­r um equilíbrio entre essas fontes [impostos e arrecadaçõ­es judiciais], de modo a não onerar o contribuin­te, nem prejudicar o acesso à Justiça”, afirma o CNJ, em nota.

O grupo não fez projeções de queda ou aumento de arrecadaçã­o.

“A ideia de projeção é irrelevant­e, não é um critério relevante para o projeto arrecadar mais ou menos, porque o Judiciário tem caracterís­tica de bem público”, disse o professor do Insper Paulo Furquim Azevedo, que também participou do grupo.

De acordo com os especialis­tas, o projeto não vai alterar o acesso à gratuidade da Justiça a pessoas carentes.

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