Folha de S.Paulo

Bolsonaro recusou realidade, afirma Mandetta em livro

Em livro, ex-ministro narra ‘traições’ e ameaças em 90 dias de pandemia

- Natália Cancian

O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta relata, em livro lançado hoje, que Jair Bolsonaro se recusava a debater a gravidade da pandemia. Ao fim de reunião sobre projeções da Covid, o presidente teria perguntado se ele elogiaria João Doria.

Era 27 de março. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, apresentav­a aos ministros Walter Braga Netto, da Casa Civil, e Sergio Moro, então à frente da Justiça, projeções que previam, no pior cenário, até 180 mil mortes pelo novo coronavíru­s.

Aquele era um dos primeiros encontros com o restante do governo sobre a epidemia que já assolava o país. Braga ficou espantado. Moro comparou a situação a “quatro Boeings caindo por dia”. Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) se mantinha alheio das discussões.

“Ele nunca aceitou sentar comigo para ver a realidade que o seu governo estava para enfrentar”, diz o ex-ministro.

Cena e relato são descritos no livro “Um Paciente Chamado Brasil”, que Mandetta lança nesta sexta-feira (25) pela editora Companhia das Letras.

Na obra, escrita por Wálter Nunes, repórter da Folha ,o ex-ministro narra os 90 dias em que, à frente da Saúde, estruturou ações de combate ao novo coronavíru­s, seguido de processo de fritura até sua saída.

O livro aponta que o presidente ignorou alertas da pasta, mesmo com os números mostrados em tela em reunião convocada às pressas em 28 de março no Palácio do Alvorada, logo após o encontro com Braga Netto e Moro.

Na época, as projeções da equipe da Saúde apontavam de 30 mil mortes (cenário tido como “otimista demais” por Mandetta) a até 180 mil caso não fossem adotadas medidas de isolamento. Hoje o país atinge 4,6 milhões de casos da Covid, com quase 140 mil óbitos.

Apesar do alerta, a preocupaçã­o de Bolsonaro no fim da mesma reunião era outra. “Você vai elogiar o [governador de SP, João] Doria?”, disse o presidente, segundo o livro.

“Vou elogiar São Paulo”, disse Mandetta, citando que o chefe ficaria ao lado de Nicolás Maduro, da Venezuela, se continuass­e a negar a gravidade da epidemia.

Em outros trechos, o livro busca mostrar como Bolsonaro passou a contrapor a Saúde em discursos contra o isolamento e a pressionar pela cloroquina, mesmo sem eficácia comprovada contra a Covid.

Em uma das ocasiões, relata, o presidente sugeriu que fossem feitas mudanças na bula do remédio por decreto, para ampliar a oferta. A medida foi contestada pela Anvisa.

“Esse livro vem par amostrar que você pode te rum técnico, mas apolítica no entorno tem papel prepondera­nte ”, diz o ex-ministro em entrevista à Folha, sobre a opção por retratar mais desses bastidores e menos da epidemia em si.

No depoimento que fez a Wálter Nunes, transforma­do no livro, , Mandetta cita episódios que considera “traições” por aliados políticos, casos de bate-boca com o ministro Paulo Guedes (descrito como economista “afeito aos números, mas que não conhece gente”), e a série de reuniões nas quais acha vaque sua demissão ocorreria ali—mas demorou. Parte desses encontros já havia sido revelada pela imprensa, mas agora aparece com impressões do ex-ministro.

Um deles ocorreu após Bolsonaro declarar, no Palácio do Alvorada, que ameaçava “usar a caneta” contra ministros que “viraram estrelas”. À época, a gestão da Saúde aparecia como bem avaliada em pesquisas —mais que Bolsonaro.

Mandetta então acusou o presidente de ser desleal e têlo ameaçado. “Disse a ele que, no meu estado, se uma pessoa diz ‘sua hora vai chegar’, significa ameaça de morte.”

Bolsonaro, diz ele, se calou, e militares tentaram colocar panos quentes para mantê-lo no cargo. Os dias seguintes, conta, foram marcados por tentativas de aproximaçã­o e recados —diretos e indiretos.

Diretos: ao chegar para reunião ao gabinete do presidente, Mandetta diz que o assessor especi alda Presidênci­a, Arthur Weintraub, bateu aporta emsu acara antes que pudesse entrar. Indiretos: minutos depois, aponta, a conversa ocorreue Bolsonaro con touque iria gravar pronunciam­ento à nação. O ex-ministro perguntou se precisava de ajuda. Negou. “Vou passar na padaria e comer um sonho”, disse Bolsonaro, segundo Mandetta.

Ele conta que descobriu só depois que não era uma padaria qualquer, mas o mesmo lugar onde havia ido no domingo anterior. “Aquilo foi um recado para me dizer que ele sabia dos meus passos, da minha vida.”

Apesar dos atritos, o ex-ministro mostra no livro que nem sempre ele e o restante do governo estiveram desalinhad­os e que, nesse tempo, fez concessões. Um exemplo foi quando militares e ele atuaram para desviar a atenção de possível caso suspeito de Covid ligado à comitiva que resgatou brasileiro­s em Wuhan, na China.

Tudo começou quando um piloto, dispensado do que Mandetta chama de “quarentena à brasileira” em Anápolis (GO), apresentou sintomas após retornar da viagem. Para evitar críticas, o caso foi colocado na lista só horas após o primeiro alerta, quando o piloto já havia passado por exames que descartava­m a Covid. Questionad­o, o ex-ministro minimiza o caso. “O militar tinha claramente uma gastroente­rite. Eu falei para testar, e ao rodar a placa [viral de testes] já veio como negativo”, afirma.

Segundo ele, divergênci­as com o Planalto também afetaram outras iniciativa­s, caso de campanha de comunicaçã­o com dados básicos (como lavar as mãos e isolamento), que acabou virando uma peça ufanista nunca lançada, diz.

A solução, diz, foi investir em coletivas de imprensa. Mandetta cita ali o contato diário com jornalista­s, incluindo os da Folha. Foi por meio das redes sociais e de uma coletiva, aliás, que o ministro confirmou a saída do cargo, em 16 de abril.

Ela ocorreu dias após dar entrevista à Globo em que citou que a população não sabia se seguia ao ministro ou ao presidente. “A partir dali, não era mais se iria sair, mas quando.”

Um Paciente Chamado Brasil Luiz Henrique Mandetta, ed. Objetiva (Companhia das Letras), R$ 49,90 (R$ 29,90 o ebook), 181 págs.

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Pedro Ladeira - 15.abr.20/Folhapress Luiz Henrique Mandetta, então ministro da Saúde, em coletiva de imprensa no Palácio do Planalto

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