Folha de S.Paulo

Mãos à obra

Como os projetos de André Rebouças, o de Luiza Trajano é o avesso do bolsonaris­mo

- Angela Alonso Professora de sociologia da USP e pesquisado­ra do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to

Em vez de depor, um senador preferiu cantar com o irmão deputado, um animador sem máscara e um mascarado de burro. A letra entoada pelos cantoresba­ilarinos era simples, como seu pensamento: “Todo maconheiro dá o toba”. Simplismo em sintonia com o discurso presidenci­al na ONU, encerrado como discurso de campanha: “O Brasil é um país cristão e conservado­r e tem na família a sua base”.

São dois documentos de um governo tacanho, infenso a fatos, como as queimadas e a pandemia, mas aferrado a mantras doutrinári­os. Esta retórica é a cloroquina da família presidenci­al, distribuíd­a aos seguidores apaixonado­s.

Retórica defensiva, para qual a simples existência de gente diferente de si é uma ameaça. Os bolsonaris­tas jogam este jogo de reação simbólica em todos os campos. Nesta semana, enquanto os Bolsonaros discursava­m e dançavam, o presidente da Fundação Palmares, autodefini­do no Twitter “negro de direita, antivitimi­sta, inimigo do politicame­nte correto, livre”, entrou de centroavan­te na área da negritude. Além de contrário à “racializaç­ão” das políticas afirmativa­s, trabalha para consagrar um time de negros conservado­res como heróis nacionais.

Na escolha, errou a mira. Deu o nome de André Rebouças ao prédio sede da fundação, com a justificat­iva: “Rebouças foi abolicioni­sta, monarquist­a e brilhante engenheiro. Orgulho do Brasil!”. De fato. Figura resplandec­ente, merecedor de homenagens mais robustas que esta e as até hoje prestadas. O que não merece é ser apropriado por governo que é seu oposto.

A começar pelo gosto musical. Enquanto a família presidenci­al canta rimas chulas, Rebouças apreciava o canto lírico. Foi ele a espinha do movimento abolicioni­sta, trabalhou pela expansão dos direitos que este governo cassa. Seu ideal era a “democracia rural”, a generaliza­ção da pequena propriedad­e, nada a ver com alianças com grandes proprietár­ios incinerado­res de mata. Professor da Politécnic­a, via a educação como meio de civilizaçã­o, nas antípodas da política governamen­tal para as universida­des. Rebouças foi um reformador, os bolsonaris­tas são reacionári­os.

Para encarnar sua utopia regressiva, poderiam pinçar o antagonist­a de Rebouças, o Barão de Cotegipe. Eminência do Partido Conservado­r, governou o país a porrete, pondo a polícia para caçar os abolicioni­stas e os que fugiam do cativeiro, enquanto fazia vista grossa para milícias que esfolavam oposicioni­stas. O Barão, ao contrário de Sérgio Camargo, nem se via como negro, o que, ao menos, o impedia de falar em nome deles.

Mas antes Rebouças que Cotegipe. O nome do abolicioni­sta na fachada denunciará, por contraste, as práticas ao estilo do escravista, que vigem da porta para dentro.

Além da batalha das mentes, há o front dos bolsos. Aí o governo deixa correr a miraculosa iniciativa privada. Pois bem, Luiza Trajano, empresária liberal como Rebouças, converteu o princípio em prática. Em vez de esperar política pública que corrija a desigualda­de racial, a dona do Magalu imbuiu-se da máxima do empreended­orismo e pôs mãos à obra: abriu emprego apenas para negros.

O que desapontou muitos liberais é que não o fez para ofícios de limpar e servir, a chamada é para cargos de comando. Uma juíza logo reclamou. É que, se emulada, como vai sendo, criará competição no topo da hierarquia social. Lá nos postos de mais renda, prestígio e poder, onde a supremacia branca é inconteste.

O governo, como o grosso da sociedade brasileira, é mais hierárquic­o que liberal, não entoará loas à Magalu. Como os projetos de Rebouças, o da empresária é o avesso do bolsonaris­mo. Corre o risco dos meninos do presidente lhe dedicarem uma de suas musiquinha­s.

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