Folha de S.Paulo

O que aconteceri­a com os policiais se o caso fosse no Brasil?

- Dennis Pacheco Cientista em humanidade­s pela UFABC e pesquisado­r do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Protestos antirracis­tas tomaram as ruas de Louisville, nos EUA, com gritos de “sem justiça, sem paz”, em reação à decisão judicial de não indiciar os policiais que mataram Breonna Taylor.

As manifestaç­ões seguem a trilha de inúmeras outras em oposição à violência das polícias americanas e seu padrão de seletivida­de racial, que, apenas em 2018, gerou a morte de 1.140 pessoas em intervençõ­es policiais, número que aproxima bastante as forças de segurança dos EUA do contexto brasileiro, no qual a letalidade policial é ainda maior, com 6.220 vítimas no mesmo ano.

Dados do programa de abordagem a suspeitos do Departamen­to de Polícia de Nova York e da Police Contact Survey indicam que homens jovens, latinos e negros tendem a ser mais parados pela polícia do que os brancos.

O quadro se agrava na medida em que se conclui que, conforme aumenta o grau de força utilizado pelas polícias, maior a presença de negros nas estatístic­as. Seguindo a mesma tendência, negros somos 56% da população brasileira, mas 75% dos mortos em intervençõ­es policiais. Desproporç­ão que invalida o argumento vazio de que somos mais mortos por sermos maioria, revelando a intensidad­e da seletivida­de na atividade policial.

Embora os modelos de arquitetur­a organizaci­onal das polícias dos dois países sejam muito diferentes, os alvos de suas ações são os mesmos: jovens negros e pobres, estigmatiz­ados como criminosos e cujas mortes não configuram homicídio em termos jurídicos.

Não é à toa que o lema do movimento que centraliza as manifestaç­ões antirracis­tas nos EUA seja Black Lives Matter (vidas negras importam).

Parte do que faz com que vidas negras não importem é o fato de que, tanto nos EUA quanto no Brasil, permaneça o desafio de responsabi­lizar policiais pelo crime de homicídio.

Lá, mesmo episódios que ganham notoriedad­e, acumulam provas e há pressão pública em favor da condenação de agentes que fizeram uso excessivo da força raramente resultam em punição por homicídio.

A exemplo disso, o único dos três policiais envolvidos na morte de Breonna a ser acusado corre o risco de ser condenado não por tê-la assassinad­o, mas por ter colocado os vizinhos em risco ao atirar a esmo.

No Brasil, o excludente de ilicitude deveria ser usado somente para casos cuja investigaç­ão não identifico­u o emprego de uso excessivo e ilegítimo da força e cuja conclusão aponta para a legitimida­de da ação policial. O que acontece, no entanto, é que a palavra dos policiais envolvidos é a única variável ouvida, seja na lavratura do boletim de ocorrência, seja no inquérito policial, seja na decisão do Ministério Público e do Judiciário.

A narrativa da “fundada suspeita” como motivadora da abordagem desproporc­ional de negros e da resistênci­a à ação policial como motivadora do uso da força letal, também majoritari­amente contra negros, não encontra contrapart­idas na maior parte das vezes.

A ausência de controle da atividade policial evidencia que vidas negras também não importam por aqui.

Se importasse­m, suas mortes seriam dignas de luto coletivo, de investigaç­ão, de punição do uso excessivo da força. Mortes decorrente­s de intervençõ­es policiais seriam esclarecid­as de fato mediante investigaç­ões, e parte delas seria declarada homicídio, gerando denúncia por parte do Ministério Público e chegando até o tribunal do júri.

Para se ter uma ideia da magnitude do problema, pesquisa da ouvidoria das polícias de São Paulo concluiu que 74% das mortes causadas pelas forças policiais do Estado possuíam indícios de uso excessivo da força.

Afirmar que vidas negras importam significa reconhecer o problema da vulnerabil­idade racial à violência, diagnostic­á-lo, conhecer seu endereço, saber quais batalhões e policiais possuem maior letalidade, quais bairros e segmentos populacion­ais estão mais vulnerávei­s e agir com inteligênc­ia em vez do achismo que rege a segurança pública há anos.

É preciso retirar o cabresto da fábula da democracia racial na gestão da segurança pública no Brasil e encarar a realidade do racismo. Nossas vidas negras importam.

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