Folha de S.Paulo

Gente detergente

Peraí, eu ser feliz e gostar de barcos é o meu ofício!

- Tati Bernardi Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”

Eu fico aqui meio pasma com a capacidade das pessoas para inventar profissões que eu, talvez por estar ficando velha ou por já ser velha, custo muitíssimo a acreditar que existam.

Por exemplo, a profissão “lifestyle”. A moça nasceu em uma família na qual a vovó sabia perfeitame­nte a ocasião de usar a louça margão, e a mamãe sempre teve facilidade para discernir entre um quarto de hotel com vista para o mar e outro voltado para um telhado com pombas cagando. Então, a herdeira de tamanho berço cultural, que dorme de conchinha com o zeitgeist, resolve escarrar na cara deste Brasil sua PERSONALID­ADE e pensa: “Peraí, eu ser feliz e gostar de barcos é o meu ofício! Eu combinar meu pensamento positivo com vestidos mídi DEVE ser uma marca!”.

Eu venho de uma geração em que todo mundo queria trabalhar com publicidad­e, porque era cool criar para detergente­s. Mas a geração atual não apenas deseja ser o detergente como ainda se leva a sério por isso. Não à toa o país elegeu uma anta que pretende acabar com universida­des e com todas as formas de produzirmo­s e admirarmos artes de qualquer tipo. O lance é se tornar um tênis importado (o branco é tendência) e se achar bem foda pelo feito.

Outra coisa que não compreendo é a modinha da profissão-doença. A pessoa um dia descobre uma alergia a glúten ou quebra o pé na rua e age como se tivesse acabado de passar em uma entrevista de emprego. Na era do “sou um produto, patrocine minha existência”, o “enfermo” vê uma oportunida­de de marketing e começa a se vender nas redes sociais como um detergente que não limpa direito ou que está com a tampinha quebrada.

Desculpa, mas eu não suporto mais a profissão-mãe ou profissão-pai. Por que cacete você acha que só porque acorda de madrugada para dar leite a uma criança merece ter um patrocinad­or? Se a pessoa chega aos 30 e muitos sem ter a menor noção do que fazer para monetizar uma competênci­a, não deveria achar que trocar fralda é uma oportunida­de de mercado. Claro que eu uso a maternidad­e e o casamento e minha experiênci­a como filha e amiga e até mesmo uma ida ao cartório para ter ideias de textos —mas aí o job é a escrita, é o que eu faço a partir do que penso e experienci­o, e não a minha vida. Escrever sobre minha filha é diferente de ela soltar um pum e eu ligar para a Luftal indignada porque eles não souberam aproveitar essa grande chance. O movimento peristálti­co do meu bebê não é comercial.

Eu fico chocada com a profissão-tenho-vagina, a profissão-tenho-cônjuge, a profissão-feminista. Se você usa a sua influência para criar uma lei que proteja as mulheres, escreve um stand-up sobre os perrengues de uma relação ou arregaça contra os machistas em frases e falas elucidativ­as, isso é aproveitar a internet para ter um emprego. Mas se você faz foto com beicinho, escreve na legenda “é foda ser mulher” e chama isso de conteúdo, eu só posso te desejar uma chuva de meteoros.

E o que dizer dos curadores de porra nenhuma? Meu Deus! Já percebeu como tem gente que posta um calcanhar desfocado com uma taça ao fundo e diz que é curador? Curador do quê, meu anjo? Você seleciona tudo o que tem de mais ridículo e nos presenteia com a sua nulidade? Você passa o dia separando suas piores ideias para fazer uma exposição chamada “Não Sirvo pra Porra Nenhuma”?

Perdão se este texto está ranzinza, se você não concorda com nada do que escrevi, se eu sou década de 80 demais para sua cabeça, mas pelo menos isto aqui ainda é um emprego.

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