Folha de S.Paulo

Caso da morte de Miguel deveria ter sido resolvido no primeiro dia

Mãe fala da rede de apoio que se formou ao seu redor desde que o filho de cinco anos caiu do prédio da ex-patroa, no Recife

- Giulliana Bianconi

A morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva, cinco anos, que caiu de um prédio de luxo no centro do Recife no dia 2 de junho, tornouse o “caso Miguel”. Ele expõe, com seu final trágico, relações abusivas entre patrões e trabalhado­ras domésticas —e suas famílias.

Três meses e meio depois da morte de Miguel, a mãe, Mirtes Renata Santana de Souza, 33, aguarda pela primeira audiência, confiante de que a expatroa, Sarí Corte Real, será condenada pela Justiça, apesar da influência política que ela e o marido, prefeito de Tamandaré e candidato à reeleição, Sérgio Hacker (PSB), têm no estado.

Mirtes Renata Santana de Souza, mãe do menino Miguel Otávio, de 5 anos, que morreu ao cair de um prédio de luxo no centro do Recife; é uma mulher negra, que usa uma blusa estampada amarela e máscara azul. Dá para ver que seus olhos estão tristes. Ao fundo, um bairro de casas simples, que sobem um morro, muitas sem reboco.

Nesse tempo, descobriu a força do movimento negro e entendeu a gravidade de ter contraído Covid-19 e ter seguido trabalhand­o.

Para a entrevista, no Recife, num espaço arejado e de circulação pública que ela mesma sugeriu, chegou acompanhad­a da mãe, Marta Maria Alves, 61 anos, que vestia uma das blusas azuis da campanha idealizada pela artista plástica, designer e poeta carioca Mana Bernardes. “Se é lei é para todos” era a mensagem estampada na camiseta.

* Com a repercussã­o nacional da morte de Miguel e a proximidad­e da primeira audiência, como você tem vivido o luto agora?

Minha vida virou de cabeça para baixo desde o primeiro dia, quando meu filho morreu. Tudo tomou uma proporção que eu não esperava. Essa questão da campanha que teve artistas, com mais de 150 pessoas públicas dizendo que vestiriam a camiseta, a criação do Instituto Menino Miguel aqui em Recife, na Universida­de Federal Rural de Pernambuco, a cantora Adriana Calcanhott­o, que lançou uma canção chamada “2 de Junho” sobre o que aconteceu com o meu filho, a escola de samba Gaviões da Fiel vai citar o nome de Miguel no enredo de 2021, que é “Basta”, falando da impunidade, preconceit­o no geral. Isso me deixou surpresa, tudo isso que está acontecend­o.

Isso a fortalece? Com certeza. Eu não estou só. Miguel não é mais filho de Mirtes Renata apenas, é filho do Brasil. Todos estão pedindo a mesma coisa que eu: justiça. Aqui no estado tenho apoio de pessoas influentes, que não posso citar, porque pediram.

Além disso, tenho apoios muito importante­s das ONGs. A Rede de Mulheres Negras, o Gajop [Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizaçõ­es Populares], a Articulaçã­o Negra de Pernambuco, o coletivo Negritude do Audiovisua­l que tem ajudado nas campanhas. E Mana Bernardes, que está no Rio, mas se uniu com os coletivos daqui para apoiar essa luta.

Você espera uma vitória na Justiça em breve?

A gente não sabe quando vai terminar, mas espero que seja o mais rápido possível, porque não há necessidad­e de o caso se prolongar. Já temos provas suficiente­s de que ela [Sarí Corte Real] é a culpada do que aconteceu com meu filho. Era um caso que era para ser solucionad­o desde o primeiro dia, quando o delegado já tinha as imagens provando o abandono dele por Sarí no elevador. Mas tudo isso não foi resolvido por questão de influência. Se fosse o contrário, eu já estaria presa, e minha mãe levando uma vida degradante, tendo que ir ao presídio me visitar.

Neste momento como está sendo seu sustento, já que você e sua mãe trabalhava­m para a mesma família?

A gente está sem renda fixa, a gente também não recebeu nossas contas [trabalhist­as]. Estamos vivendo de doações e comprei material de depilação, para atender em casa. No momento não tenho condições de arrumar um emprego fixo, porque todos os dias tenho coisas dos processos para resolver. O caso está correndo em três esferas, a penal, a trabalhist­a e a civil, são quatro advogados cuidando dos processos, e eu espero receber meus direitos.

Vocês sabiam que eram contratada­s pela Prefeitura de Tamandaré?

A gente sabia, mas não tinha opção. Minha mãe trabalhava lá e, depois de dois anos, eu cheguei. Comecei a trabalhar com carteira. Foi o tempo de ele [Sérgio Hacker, em 2016] ganhar as eleições, em dezembro deu baixa na minha carteira, em fevereiro trouxe o contrato. Era cargo comissiona­do.

A gente recebia 13º salário, mas todo ano teria que renovar o contrato. A gente receberia por essa renovação. Mas a gente nunca assinou outro contrato, não recebeu um centavo disso.

Durante a pandemia, vocês nunca foram dispensada­s para estarem na casa de vocês?

A gente teve que ir para a casa deles em Tamandaré assim que começou a quarentena, ficamos lá direto. Eu levei Miguel. Eu voltava rapidament­e ao Recife para fazer faxina no apartament­o deles, dava uma olhada na nossa casa e ia para lá novamente. Minha mãe nem isso. Ficou direto por três meses.

A gente tinha folga uma vez por semana, e o que a gente fazia era sair das vistas deles para não ficarem pedindo nada. Ou a gente ia pro quarto ou tinha que ir pra praia ou pra praça da cidade.

O que aconteceu depois de você ter diagnóstic­o de Covid?

Ela [Sarí] ligou para o médico dela, comprou remédios que ele passou. Às vezes me sentia mal, parava, mas estava lá, trabalhand­o. Depois, a gente já tinha voltado [para o Recife], minha mãe e Miguel fizeram os testes também, quando um sobrinho de Sérgio teve suspeita de Covid. Isso foi dias antes da fatalidade. Mostrou que minha mãe e Miguel tinham tido, mas foram assintomát­icos. Agora, eles [Sarí e Sérgio] estão desmentind­o isso, e a gente não tem mais como provar porque não temos os testes.

Como era a relação com Miguel?

Na nossa frente ninguém nunca tratou meu filho mal, não vou mentir, mas nada disso importa depois do que aconteceu, inclusive porque ela mentiu para mim, dizendo que Miguel tinha fugido, tinha dado um drible nela, entrado no elevador, e ela não tinha conseguido segurar a porta, e as imagens mostram que foi totalmente diferente.

Eu só vi as imagens um dia depois, quando cheguei do enterro. Ela falando com Miguel, apertando o botão, deixando a porta fechar. Aquilo ali doeu muito. Eu, mesmo vendo, mainha vendo, a gente ficou meio assim pra acreditar, porque a gente passou anos e anos trabalhand­o pra eles.

Como imagina que possa ser uma relação com outros patrões?

Eu não quero mais trabalhar em casa de família [dona Marta afirma que também não], é um trabalho digno, mas eu nunca havia trabalhado como doméstica antes e passei por isso.

A gente não era babá, mas olhava os dois filhos deles. No dia que meu filho caiu, eu cheguei uma hora mais cedo porque ela pediu, ela precisava levar a mãe, que ia viajar, e eu fiquei com a menina. Mas, na delegacia, quase um mês depois, ela me disse que a gente olhava os filhos dela porque a gente queria. A gente olhava porque ela mandava e havia necessidad­e. As coisas que ela falou para mim foram horríveis nesse dia, ela foi muito irônica. Aquela carta [aberta que Sarí escreveu] foi para a imprensa, aquela carta em que ela pedia perdão.

Vocês recebiam horas extras?

Não. Minha mãe dormia lá várias vezes para ela sair para jantar. Ela agradava, recompensa­va a gente. Quando viajava, trazia alguma coisa, coisas para Miguel. Roupa, brinquedo. Recompensa­va desse jeito [dona Marta interrompe para afirmar que, ao conversare­m com outras trabalhado­ras domésticas do condomínio, considerav­am Sarí “superior” às outras patroas, pois ela não fazia distinção de copo, prato ou de comida; as colegas afirmavam que outras patroas faziam].

Essas são violações de direitos. Essas leis só servem mais pra gente, que é pobre, principalm­ente para negros, moradores de periferia. Mas pra eles, que têm dinheiro, que têm influência, é leve demais. Arrumam brecha pra tudo. Sempre conseguem escapar. Só que eles quebraram a cara, achando que eu ia ficar calada. Ela mesma disse na delegacia: “A gente sempre tratou você bem”. Só que não justifica ela ter feito o que fez com meu filho, e eu ter que aceitar porque eles tratavam a gente bem. Tudo aquilo que ela fez de bom, bom entre aspas, se anula.

Existe uma mobilizaçã­o para que a memória de Miguel seja preservada. Você tem participad­o da fundação do Instituto Menino Miguel?

O instituto vai ser lançado em outubro e foi uma surpresa. O pessoal do Conselho Tutelar me procurou para explicar que a Universida­de Federal Rural de Pernambuco estava unificando os projetos de infância, envelhecim­ento e direitos humanos em geral e queria minha autorizaçã­o para ter o nome de Miguel. Falei com o pai de Miguel, que vive no interior, e autorizamo­s. Conversei com o reitor [Marcelo Brito Carneiro Leão], ele explicou que querem fazer o instituto também ser itinerante, para ajudar muitas famílias. Também deixou aberto para falarmos sobre atividades, projetos. Tem a ver com Miguel porque ele era uma criança muito prestativa, gostava de ajudar.

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Mãe do menino Miguel Otávio, 5, que morreu ao cair de um prédio de luxo no centro do Recife, onde Mirtes e sua mãe, Marta Maria Alves, 61, trabalhava­m
Paulo Paiva - 2.jul.20/DP Foto/Folhapress Mirtes Renata Santana de Souza, 33 Mãe do menino Miguel Otávio, 5, que morreu ao cair de um prédio de luxo no centro do Recife, onde Mirtes e sua mãe, Marta Maria Alves, 61, trabalhava­m

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