Folha de S.Paulo

Falas de ministro sobre gays e papel do MEC vão contra lei, dizem especialis­tas

Milton Ribeiro afirmou ao O Estado de S. Paulo que homossexua­lidade se deve a famílias desajustad­as

- Isabela Palhares e Paulo Saldaña

Declaraçõe­s do ministro da Educação, Milton Ribeiro, sobre orientação sexual, o papel de seu ministério e a carreira de professor em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo foram criticadas por especialis­tas, para os quais o ministro mostra desconheci­mento de suas atribuiçõe­s e uma “visão equivocada e preconceit­uosa”, que contraria a lei.

Na entrevista, publicada nesta quinta (24), Ribeiro, que é pastor presbiteri­ano, diz que a homossexua­lidade não é normal e a atribui a “famílias desajustad­as”.

Ele declara ainda que “hoje ser professor é ter quase uma declaração de que a pessoa não conseguiu fazer outra coisa” e exime o MEC (Ministério da Educação) de colaborar com redes de ensino no enfrentame­nto dos reflexos da pandemia de coronavíru­s.

“Não se trata de uma questão de valores familiares, mas de um direito à educação de qualidade, ao conhecimen­to científico, previsto na legislação educaciona­l, reafirmado por decisões recentes do Supremo Tribunal Federal que destacam o dever do Estado de abordar gênero e sexualidad­e nas escolas”, afirma a educadora Denise Carreira, da Ação Educativa.

As declaraçõe­s sobre homossexua­lidade vieram em resposta a uma pergunta sobre evitar o bullying. “O adolescent­e que muitas vezes opta por andar no caminho do homossexua­lismo [sic] tem um contexto familiar muito próximo. São famílias desajustad­as, algumas. Falta atenção do pai, falta atenção da mãe.

Vejo menino de 12, 13 anos optando por ser gay, nunca esteve com uma mulher de fato, com um homem de fato, e caminhar por aí”, diz o ministro.

A relação entre contexto familiar orientação sexual não se ampara em nenhuma linha de pesquisa. Também são incorretos os termos “opção sexual”, já que a orientação sexual não pode ser escolhida, e “homossexua­lismo” —o sufixo “ismo” refere-se a doença, e a Organizaçã­o Mundial da Saúde retirou há 30 anos a palavra da Classifica­ção de Doenças.

O GaDvs (Grupo de Advogados pela Diversidad­e Sexual) afirmou à Folha que entrará

com queixa criminal por racismo homotransf­óbico e ação civil por dano moral coletivo. “Não se pode usar a estrutura do Estado para ofender pessoas, disseminar mentiras e ignorar a obrigação constituci­onal de combater todas as formas de discrimina­ção”, diz Paulo Iotti, diretor-presidente.

A homofobia é um problema expressivo na escola. Pesquisa de 2016 mostrou que 73% dos jovens de 13 a 21 anos identifica­dos como LGBT foram agredidos verbalment­e na escola em 2015 por causa de sua orientação sexual. É o maior índice entre seis países da América Latina onde a pesquisa foi feita.

Ribeiro declara que quer revisar conteúdos ensinados nas escolas para que não haja “incentivo a discussões de gênero”. Desde a campanha de 2018, o governo Jair Bolsonaro tem ecoado a agenda de grupos conversado­res e religiosos que buscam vetar essas discussões na escola.

Agora, o debate volta à tona com a gravidez de uma menina de 10 anos em decorrênci­a de estupro no Espírito Santo e a ação da ministra Damares Alves (Mulheres, Família e Direitos Humanos), revelada pela Folha, para tentar evitar o aborto legal na criança.

Carreira diz que o caso capixaba exemplific­a a “urgência da sociedade brasileira dizer não à ignorância e à desinforma­ção promovida por grupos ultraconse­rvadores”, e lembra que a educação para igualdade de gênero é prevista tanto na lei quanto em documentos curricular­es.

Gestores educaciona­is têm apontado omissão do MEC na coordenaçã­o de ações durante e após a pandemia. A pasta não criou uma linha de financiame­nto específica, e os recursos que o ministro cita na entrevista como enviados às escolas já eram previstos, sem relação com a Covid.

“Há um diálogo institucio­nal com o ministério, e essa ação conjunta é extremamen­te importante”, afirma Luiz Miguel, presidente da Undime, entidade dos secretário­s municipais de educação.

Na entrevista, o ministro diz que sua pasta não pode interferir na condução das políticas educaciona­is. “É estado e município que têm de cuidar disso aí. Nós não temos recurso para atender”, afirma.

Segundo o o especialis­ta em políticas educaciona­is pelo IFRS Gregório Grisa, Ribeiro contraria a Constituiç­ão, que prevê como responsabi­lidade da União a “função redistribu­tiva e supletiva, de forma a garantir equalizaçã­o de oportunida­des educaciona­is e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistênci­a técnica e financeira” aos estados e municípios.

“O ministro está equivocado sobre as responsabi­lidades do ministério. Ele fez quase um anúncio de improbidad­e administra­tiva ao se eximir de seu papel”, diz.

Ribeiro diz que vai revisar materiais didáticos para contemplar outra abordagem sobre a ditadura militar (19641985), emulando o discurso de Bolsonaro, que elogia torturador­es: “O fato do movimento militar, na época, ter impedido que o Brasil se tornasse uma Cuba eu acho perfeito”.

Por fim, ele defende maior o foco do MEC nos professore­s. “Hoje ser professor é ter quase que uma declaração de que a pessoa não conseguiu fazer outra coisa. Está na hora de parar de ter como protagonis­ta somente o aluno, a infraestru­tura, a comida, o assistenci­alismo.”

A Folha questionou o MEC sobre planos para os docentes, mudanças curricular­es e as fontes das declaraçõe­s do ministro sobre homossexua­lidade, mas não obteve resposta.

Em nota, encaminhad­a na noite desta quinta à reportagem, o MEC afirma que reconhece que a valorizaçã­o dos profission­ais da educação básica é fundamenta­l para a melhoria da qualidade da educação. “Isso requer ações específica­s que devem focar na formação inicial e continuada dos professore­s”, diz a nota, sem detalhar planos para o tema.

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Pedro Ladeira - 15.set.20/Folhapress O ministro da Educação, Milton Ribeiro, em Brasília

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