Folha de S.Paulo

O vírus do clubismo

Em meio à pandemia, a pergunta necessária é: vai dar para jogar até o fim?

- Paulo Vinicius Coelho Jornalista, autor de “Escola Brasileira de Futebol”, cobriu seis Copas e oito finais de Champions

Não é porque o Goiás tinha 14 jogadores infectados por coronavíru­s e enfrentou o Palmeiras no Allianz Parque, em agosto, que todos os jogos devem ter o mesmo critério. O Flamengo teve 16 contaminad­os durante a viagem ao Equador. Falamos em empatia. Pois se coloque no lugar de quem manteve o jogo Palmeiras x Goiás e tinha de tomar a decisão de adiar Palmeiras x Flamengo.

É o tipo de escolha fácil para quem está do lado de fora. Ser escravo da coerência ou tomar a decisão pela saúde, em meio ao surto de Covid-19 no Ninho do Urubu.

As redes sociais pulsaram com comentário­s que foram do “bem feito ao Flamengo” até “o Palmeiras tem de ter força na confederaç­ão”.

Há décadas, o vírus mais letal do futebol brasileiro é o clubismo. Quem já assistiu a uma reunião da Comissão Nacional de Clubes ou do antigo Clube dos 13 percebeu como é impossível haver dirigentes pensando no bem coletivo.

À medida em que os casos de Covid-19 no Flamengo aumentavam em progressão geométrica durante a quinta-feira (24), a única pergunta pertinente era: vai dar para continuar o campeonato?

É justo questionar os jogadores do Flamengo aglomerado­s e sem máscaras no voo de volta do Equador, tentar descobrir onde se deu o furo dos protocolos, entender se algum jogador do elenco foi para uma balada e ajudou a contaminar a todos os outros. Todas as perguntas são necessária­s para entender a origem e como agir para tentar evitar novos surtos.

Mas teve torcedor rubro-negro insinuando que Fred, do Fluminense, contaminou a todos —não foi isso— e outros dizendo que, se o Goiás jogou, o Flamengo tem de jogar.

O que parece claro é que a Libertador­es e as viagens pelo continente abriram margem a mais contaminaç­ões, num cenário que já não era fácil. Depois do adiamento de Goiás x São Paulo, a comissão médica da CBF entendia que a situação se acalmaria após a quarta rodada. E de fato, o noticiário mudou.

Em vez de o Brasileiro invadido pelo coronavíru­s, entraram o vexame do Flamengo contra o Independie­nte del Valle, o Palmeiras que não perde e nem ataca, o Corinthian­s beirando a zona de rebaixamen­to, o sobe e desce de São Paulo e Santos.

Até os times começarem a cruzar o continente, e os casos explodirem na segunda semana da Libertador­es.

Se o Brasil é o segundo país em número de mortes no planeta, o Peru é o primeiro por milhão de habitantes e o Equador está tecnicamen­te empatado nesse índice.

As viagens aumentaram o risco, enquanto a rotina dava a impressão aos jogadores de que era possível relaxar. As cenas de Rodrigo Caio comandando uma palestra dentro de campo, sem máscara, com Thuler, Léo Pereira e Renê juntos, demonstra que todos já estavam levando a vida perto do normal. Os quatro estão infectados.

É óbvio que o protocolo tem furos. Nada é 100% garantido, nem no futebol, nem na indústria, no comércio ou nos cinemas, autorizado­s a reabrir em outubro, no Rio de Janeiro.

No caso do surto do Flamengo, é mais provável que se tenha furado o protocolo do que o protocolo ter dado furo.

Furar o protocolo é, por exemplo, levar toda a diretoria, com senhores acima dos 60 anos, para uma viagem pelo continente mais afetado pelo coronavíru­s neste momento.

Não adianta fazer como o Chapa, personagem do velho desenho animado Carangos e Motocas, e dizer “eu te disse, eu te disse” que não era para voltar o futebol. Voltou.

Vai haver contradiçõ­es e incoerênci­as daqui até a vacina. Não vai ser normal. A pergunta necessária é: vai dar para jogar até o fim? E nunca: como vou levar vantagem sobre meu rival?

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