Clipe de Beyoncé exalta a pele mais escura, alvo de discriminação racial
‘Brown Skin Girl’ é prato cheio a quem combate colorismo, seja pelos versos ou pela participação de artistas retintos
“Muito do que eu aprendi sobre cores foi porque tenho uma filha mestiça. Como ela tem a pele mais clara e o cabelo mais liso do que o meu, sua vida —nesta sociedade racista e colorista— é infinitamente mais fácil”, conta a escritora Alice Walker em seu livro “Search of Our Mothers’ Gardens: Womanist Prose”.
Foi nesta obra, de 1982, que a autora cunhou o termo colorismo para designar um tipo de discriminação racial.
Quanto mais próximo do branco for o tom da pele, a tendência é de mais aceitação social. É o que defende Walker, autora de “A Cor Púrpura”.
É sobre esse assunto que o recém-lançado clipe de “Brown Skin Girl”, de Beyoncé, se debruça. O vídeo, que estreou em meio ao Black Lives Matter, é um prato cheio a quem combate o colorismo, seja pela letra, de enaltecimento à raça negra, ou pelas participações de Kelly Rowland, Naomi Campbell, Lupita Nyong’o, WizKid e SAINt JHN, que são artistas retintos.
No ano passado, o pai da cantora, Mathew Knowles, usou a filha para exemplificar como as cantoras negras retintas dos Estados Unidos tiveram reconhecimento menor do que as de pele mais clara, como Beyoncé, Alicia Keys, Rihanna e Nicki Minaj.
No mês passado, a atriz Zoe Saldana, que é negra, pediu desculpas, numa live no Instagram, por ter interpretado a cantora Nina Simone no filme “Nina”, de Cynthia Mort. Para o trabalho, ela usou tinta para escurecer o tom de pele e prótese para alargar o nariz. “Ela merecia mais, e eu sinto muito, porque amo sua obra.”
Segundo a cineasta Sabrina Fidalgo, casos como o de “Nina” são lamentáveis. “Não é culpa desses atores, mas é uma falta de sensibilidade e estudo desses diretores que escolhem artistas que não correspondem ao fenótipo de quem será retratado”, diz, lembrando o caso polêmico do musical “Dona Ivone Lara”, ocorrido em 2018, quando Fabiana Cozza renunciou ao papel de protagonista depois de receber várias críticas.
Fidalgo enfatiza as particularidades do contexto histórico de cada país, exemplificando diferenças entre Brasil e Estados Unidos. “Lá há a ideia do ‘one drop rule’ [‘regra do sangue único’, em português]. Ter um avô negro é o suficiente para ser considerado afrodescendente, mas aqui não. O Brasil foi forjado etnicamente. Houve uma propaganda de embranquecimento patrocinada pelo governo”, afirma.
“As pessoas que não são negras retintas têm outra vivência, muitas falam de se descobrirem negras, o que é quase uma piada para quem é retinto. Não dá para agora passar por cima da dor de outros que são a base da pirâmide, as que têm menos chances e são totalmente invisibilizadas.”
Uma das pinturas mais famosas de Modesto Brocos, “A Redenção de Cam” é uma das mais emblemáticas quando o assunto é a miscigenação no Brasil. O quadro, de 1895, retrata três gerações de uma família diante da busca pelo embranquecimento e relaciona a raça negra a um mito bíblico, no qual Noé amaldiçoa Cam como o “servo dos servos”.
Mesmo que a maioria da população brasileira se autodeclare como preta ou parda, como apontam os dados do IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o negacionismo em relação à realidade do país ainda é muito presente entre os cidadãos.
Depois de vencer um concurso popular para ser a Globeleza, exibido pelo Fantástico, da Globo, em 2013, a modelo e atriz Nayara Justino teve uma alegria efêmera. Diferentemente das outras mulheres que haviam sido o símbolo carnavalesco da emissora, ela, que tem a pele retinta, foi vítima de ataques racistas.
“Me machucou muito porque eu via pessoas negras envolvidas nos ataques”, diz ela. Os crimes, no entanto, não foram o único problema. No final daquele ano, Justino foi demitida do cargo. “Não teve diálogo. Marcaram uma reunião e disseram que eu não seria mais a Globeleza, sem falar o motivo. Simples assim.”
Todas as escolhidas depois foram negras não retintas, mas a Globo nega que a demissão tenha ocorrido para agradar aos que atacaram Justino.
A ex-Globeleza diz ainda que participou muitas vezes de processos seletivos de agências de modelo. Mas, mesmo quando os critérios exigiam pessoas negras, os vencedores raramente tinham pele retinta ou traços negroides.
“Quem mais deveria estar trabalhando para resolver isso são as pessoas brancas. O colorismo nada mais é do que um braço do racismo”, diz a youtuber Gabi Oliveira, que ganhou sucesso falando sobre o movimento negro.
Segundo ela, a indústria artística precisa se reinventar e combater a busca pelo embranquecimento, que, segundo Oliveira, já pressionou artistas a modificarem o corpo por mais aceitação. A youtuber lembra então o exemplo da cantora Azealia Banks, que, embora seja uma militante da causa negra, clareou sua pele.
“Quem são as nossas principais referências de pele retinta?”, questiona ela. “Não é difícil entender essa exclusão. Está em toda a indústria.”