Alas negras de partidos pedem que STF barre ‘troca de cor’ de candidatos
Núcleos afros de 6 siglas dizem vislumbrar possibilidade de reprise das ‘laranjas’ de cota feminina
brasília Em carta enviada nesta sexta (25) aos ministros do Supremo Tribunal Federal, setoriais afros de seis partidos sugerem aos ministros a adoção de regulamentação da cota racial eleitoral com o objetivo de evitar fraudes e um possível efeito reverso de dificultar a participação de negros na política.
Entre as medidas objetivas sugeridas pelos núcleos afros de Cidadania, PSDB, PDT, PSB, MDB e DEM está a de que haja fiscalização e rejeição da mudança de autodeclaração da cor por parte de candidatos em relação ao que informaram nos últimos pleitos.
“Outro meio de coibir atos fraudulentos é a checagem da declaração de campanhas anteriores dos que já disputaram cargos, tendo estes que manter a declaração”, diz o texto.
As siglas afirmam vislumbrar “o perigo de candidaturas de ‘laranjas’, em que negros sirvam de repassadores de recursos, como ocorreu com a cota de 30% das mulheres em algumas situações.”
Além das candidaturas fictícias —no caso das mulheres, reveladas pela Folha em reportagens em 2019—, outro receio de fraude da cota eleitoral para negros é a de que haja autodeclarações falsas com o objetivo de obter as verbas.
Assim como no recenseamento da população feita pelo IBGE, desde 2014 os candidatos devem declarar a cor ou raça com base em cinco identificações: preta, parda (que formam a população negra), branca, amarela ou indígena.
A Folha mostrou nesta sexta (24) que ao menos 21 mil candidatos de todo o país neste ano mudaram a declaração de cor e raça que deram em 2016, conforme registros disponibilizados até quinta (23) pela Justiça Eleitoral.
A maior parte das mudanças (36%) foi da cor branca para parda. O movimento contrário (de pardo para branco) vem na sequência, com 30%.
Apesar da possibilidade de fraude, especialistas falam no impacto do aumento de pessoas que se reconhecem como pretas e pardas após ações de combate ao racismo.
Em liminar que deve ser analisada nos próximos dias pelo plenário do STF, Ricardo Lewandowski determinou que os partidos distribuam já em 2020 a verba pública de campanha e o espaço da propaganda eleitoral de forma proporcional a brancos e negros.
“Entendemos que as estruturas partidárias em âmbito federal, estadual e municipal são brancas em seus espaços de decisão, tendo na base a massa negra que soma mais de 54% da nossa nação”, diz o documento dos setoriais afro. “Esta massa, agora, dá um passo gigantesco para que possamos ser representados de fato nos espaços de poder público eletivo. Porém, um passo gigantesco na direção errada pode ser fatal.”
A posição favorável à adoção imediata das cotas se choca com a das cúpulas partidárias das próprias siglas, que em reunião nesta semana com o presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Luís Roberto Barroso, chegaram a dizer ser inexequível o cumprimento da medida neste ano.
Os núcleos afros sugeriram aos ministros também a adoção de fiscalização da cor declarada pelos candidatos com base nas características físicas das pessoas, e não em suposta ascendência negra.
Afirmando ainda que a medida pode levar alguns partidos a diminuir o recrutamento de negros, pedem que o STF estabeleça também cota de candidatos por legenda, não só cota financeira proporcional aos candidatos lançados.
Especialistas defendem fiscalizar autodeclaração João Pedro Pitombo e Géssica Brandino
salvador e são paulo Em meio à criação de cota financeira do fundo eleitoral para candidatos negros, entidades do movimento negro, pesquisadores e núcleos afros de partidos defendem uma regulamentação da nova regra e a implantação de mecanismos de fiscalização para evitar possíveis fraudes.
Conforme revelado pela Folha
nesta sexta (25), ao menos 21 mil candidatos que disputarão a eleiçõão neste ano mudaram a declaração de cor e raça que deram no pleito de 2016, conforme registros disponibilizados pela Justiça Eleitoral.
Na avaliação de especialistas, vários fatores podem explicar as mudanças. Um deles é a forma como o registro é feito junto à Justiça Eleitoral, segundo o sociólogo Luiz Augusto Campos, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
“Você tem muito preenchimento que nem sequer é feito pelo candidato. Não excluo pessoas que realmente mudaram o modo de se enxergar, mas, na minha opinião, o grosso que explica isso é a displicência em relação ao preenchimento mesmo.”
Outro aspecto apontado pelo cofundador da Uneafro Brasil e da Coalizão Negra por Direitos, Douglas Belchior, é que os dados do IBGE mostram há mais de uma década uma alta crescente de autodeclarados pretos e pardos na população.
Ele classifica como “reação conservadora e racista” associar a mudança na autodeclaração à política aprovada pela Justiça em favor dos negros.
“Esse tipo de abordagem, dando luz à fraude, de alguma maneira enfraquece o lado positivo e a importância da política de forma deliberada, o que a gente não pode aceitar.”
A distribuição proporcional de recursos para candidatos negros é celebrada por organizações e especialistas como uma forma de superar a barreira financeira, vista como um dos principais obstáculos para que mais negros sejam eleitos no país.
Para que a política seja efetivada, especialistas defendem a adoção de procedimentos de heteroidentificação, no qual os candidatos que se declararem pardos ou pretos sejam submetidos à avaliação.
“Não basta se autodeclarar. É preciso que isso seja confirmado por uma avaliação baseada no fenótipo”, diz Samuel Vida, coordenador do programa Direito e Relações Raciais da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Presidente do Tucanafro, do PSDB, Gabriela Cruz também defende a heteroidentificação, mas diz que é preciso regras claras para respaldar os questionamentos a possíveis fraudes. “Os próprios núcleos afro dos partidos podem ajudar.”
O presidente do MDB Afro, Nestor Neto, aponta que o processo pode ser baseado em portaria de 2018 que regulamentou a autodeclaração em concursos públicos.
“Agora é a gente aguardar a votação, sacramentar e ir pra cima dos partidos para garantir que os critérios que a gente defende sejam adotados e não apenas a autodeclaração, ou vai ser um Deus nos acuda.”
Por outro lado, especialistas consideram a autodeclaração importante por sua dimensão simbólica, como afirma a professora Jamile Borges, coordenadora do Programa de PósGraduação em Estudos Étnicos e Africanos da UFBA.
“O Brasil sempre teve uma postura negacionista em relação ao racismo, com a difusão da ideia de uma democracia racial. A autodeclaração nos obriga a tomar uma posição.”
Ela afirma que, com a implantação de políticas de reparação, as tentativas de fraude são inevitáveis. Mas a transparência e a discussão aberta sobre o tema podem reduzir o número de casos e incentivar os partidos a abrirem espaços de maior protagonismo para candidatos negros.
O avanço da pauta do racismo fez com que candidatos que se declararam pardos no passado se identificassem como brancos neste ano. Foi o caso do deputado federal Celio Studart (PV-CE), candidato a prefeito de Fortaleza, que tem pele e olhos claros.
“Na eleição passada, eu havia levado em consideração também minha composição familiar e ascendência miscigenada. Mas refleti e optei por mudar, levando em conta exclusivamente a cor de pele.”
O mesmo aconteceu com o deputado federal Heitor Freire (PSL-CE), outro candidato à prefeitura da capital cearense. Ele afirma que tem origem miscigenada, com pai pardo e mãe com raízes indígenas.
Contudo, optou por se declarar branco, para evitar possíveis questionamentos. “Foi uma decisão que tomei de maneira muito leve, sem levar em conta questão ideológica.”
O advogado da ação que resultou na criação da cota financeira para candidaturas negras aprovada pelo TSE, Irapuã Santana, da ONG Educafro, diz que esse reconhecimento é fruto da ampliação da discussão no país sobre o tema.
“É muito pelo debate racial que a gente tem feito nos últimos anos, que faz as pessoas tomarem consciência e se colocar”, afirma.