Folha de S.Paulo

Eficácia de vacinas depende da logística de distribuiç­ão

- Everton Lopes Batista e Marina Freire

O primeiro registro de uma vacina contra a Covid-19 para distribuiç­ão à população brasileira deve chegar até o início de 2021.

A eficácia da imunização, porém, depende da potência da proteção que a substância poderá oferecer e de um planejamen­to logístico capaz de mitigar a transmissã­o e os impactos da doença mesmo com um número de doses inicialmen­te limitado.

O governo federal ainda não tem uma proposta. O Ministério da Saúde afirmou que trabalha com especialis­tas para o desenvolvi­mento do Plano de Operaciona­lização da Vacinação contra a Covid-19.

A pasta adiantou que a distribuiç­ão das doses será absorvida pela Rede de Frio, esquema logístico do Programa Nacional de Imunização que permite o armazename­nto e o transporte de vacinas nas temperatur­as necessária­s.

“O objetivo da vacina será definido com o avanço dos estudos dos imunizante­s que estão em desenvolvi­mento. A parcela da população a ser vacinada também depende dos resultados das pesquisas, a partir dos quais poderá ser indicada a melhor estratégia”, afirma o ministério.

A partir de dezembro, a pasta deve ter acesso a dois lotes de 15,2 milhões de doses cada, disponibil­izados pela AstraZenec­a à Fiocruz. A companhia britânica tem um acordo com o governo federal para fornecer a vacina desenvolvi­da em parceria com a Universida­de de Oxford. Ao longo do primeiro semestre 2021, esse montante deve chegar a 100 milhões de doses.

Outra parcela, de cerca de 10% da população, deve ser imunizada pelas doses fornecidas pela Covax Facility, uma coalizão internacio­nal para facilitar o acesso a vacinas coordenada pela OMS (Organizaçã­o Mundial de Saúde).

O estado de São Paulo assinou contrato para receber, até dezembro de 2020, 46 milhões de doses da CoronaVac, desenvolvi­da pela chinesa Sinovac. Até 2021, devem chegar outras 14 milhões de doses, totalizand­o 60 milhões.

As duas vacinas que estão mais perto de um registro no país, porém, devem ser aplicadas em duas doses com um intervalo de alguns dias entre elas. Isso reduz pela metade o número de pessoas que serão imunizadas com a quantidade de doses disponívei­s.

De acordo com especialis­tas, os resultados dos testes clínicos de fase 3 são imprescind­íveis na definição de uma estratégia para a imunização. “Cada vacina vai impor problemas logísticos diferentes dependendo da eficácia”, afirma Ivan França Júnior, médico e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP.

As fases 1 e 2 de testes clínicos servem para avaliar a segurança e a dose necessária para gerar uma resposta imune. A fase 3 é a mais extensa e comprova a capacidade que a substância tem de dar proteção contra a infecção.

A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) informou que poderia dar aval a uma imunização contra Covid com eficácia de 50% —geralmente a agência estabelece 70% como mínimo de eficácia. Esse número representa a porcentage­m de pessoas que tomariam a vacina e ficariam imunizadas de fato.

Em ano de eleições, surge uma disputa entre as esferas de governo que pressionam para que a sua candidata a vacina seja a primeira a ganhar um registro da Anvisa.

Para Ricardo Gazzinelli, presidente da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI) e pesquisado­r na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), é razoável o uso de uma vacina com 50% de eficácia na atual conjuntura, mas os resultados dos estudos não devem ser apressados para que a medida do efeito da vacina seja mais precisa.

“Se a análise de eficácia é feita muito cedo e chegamos ao resultado de 50% em quatro meses, a tendência é que aos oito meses de estudo esse número caia. O melhor é fazer essa medida com pelo menos 12 meses para ter uma orientação melhor de como usar a vacina”, completa.

Segundo Guilherme Werneck, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), uma vacinação antes de resultados consistent­es pode gerar falsa sensação de segurança e fazer com que pessoas que tomaram a vacina, mas não foram protegidas por ela, deixem de seguir regras de proteção pessoal.

“Para o momento, seria uma grande ajuda, mas não seria nossa bala de prata. Vamos gastar para produzir uma quantidade de vacinas e só metade será útil”, diz Werneck.

A CoronaVac, testada pelo Instituto Butantan, iniciou os estudos de fase 3 no Brasil em julho. O governador João Doria (PSDB) anunciou que resultados preliminar­es estariam disponívei­s para avaliação da Anvisa ainda em outubro —cerca de três meses após o início do teste— e que o início da vacinação de grupos prioritári­os seria em dezembro.

O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, empurrou o início da vacinação com a candidata escolhida pelo governo federal para janeiro. Os testes de fase 3 também começaram no Brasil em julho.

Com o resultado dos estudos em mãos, a definição de grupos prioritári­os será o primeiro desafio a ser enfrentado. A lista deve incluir pessoas que são mais suscetívei­s a ter complicaçõ­es graves ou morrer com a doença e profission­ais essenciais, como trabalhado­res da saúde.

No caso da Covid-19, idosos, pessoas obesas ou com doenças crônicas como diabetes correm o maior risco. Mas, por questões de segurança, os estudos com a vacina incluem esses grupos em momentos posteriore­s, atrasando os resultados.

“Algumas vacinas podem ter eficácia de 90% nos mais jovens, mas quando vai para a faixa etária acima de 60 anos a imunogenic­idade [capacidade de provocar resposta imune] fica abaixo de 50%. Ela pode não ter eficácia para o grupo de maior risco”, afirma Gazzinelli.

De acordo com o presidente da SBI, a Anvisa não deve liberar a vacinação para grupos nos quais o imunizante não foi testado, mas uma vacina de boa eficácia distribuíd­a aos jovens adultos pode fazer diminuir a transmissã­o do vírus e proteger também os mais idosos e outras pessoas dos grupos de risco.

Em meados de setembro, a OMS lançou um documento com orientaçõe­s gerais para a definição dos grupos prioritári­os. Estão incluídas as pessoas com maior risco de desenvolve­r a Covid com gravidade, pessoas com comorbidad­es, trabalhado­res com maior chance de infecção e crianças em idade escolar.

Para Gazzinelli, da SBI, uma estratégia que pode ser adotada quando as doses disponívei­s ainda são poucas é a vacinação em locais onde a taxa de transmissã­o é mais alta, o que evitaria que a doença se espalhasse ainda mais.

O armazename­nto e o transporte das vacinas também requerem atenção precoce, alertam os especialis­tas.

A Rede de Frio do Ministério da Saúde deve dar conta de distribuir amplamente imunizante­s que dependem de temperatur­as de geladeira (2ºC a 10ºC), mas alguns dos que estão em produção precisam de maior refrigeraç­ão.

A CoronaVac pode ser armazenada na faixa de 2ºC a 8ºC e suporta até 27 dias a 37ºC, o que facilita sua distribuiç­ão a lugares distantes e de difícil acesso.

A temperatur­a de guarda da vacina da AstraZenec­a, porém, ainda é uma incógnita.

O braço da empresa no Brasil diz que, por questões de segurança, não informa o dado, mas a Fiocruz afirma que, quando o imunizante estiver finalizado, deve ser conservado em 2ºC a 8ºC. O jornal americano The Wall Street Journal, contudo, afirmou que o produto depende de temperatur­as entre 0ºC e -10ºC.

Como os testes em andamento são feitos com a vacina em temperatur­a abaixo de zero, descongela­das logo antes da aplicação, novos dados deverão ser coletados com o imunizante finalizado. O processo pode atrasar a concessão de um registro.

A vacina da Pfizer, também testada no país, precisa ser mantida a -70ºC. Na avaliação de especialis­tas, quanto mais baixa for a temperatur­a que uma vacina demandar para ser conservada, mais difícil será para a estrutura de logística do SUS distribuir a imunização com eficiência.

A necessidad­e de refrigerad­ores mais potentes poderia inviabiliz­ar a disponibil­ização do imunizante no momento.

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