Folha de S.Paulo

Ação pode ser qualificad­a como censura privada

- Pablo Ortellado

Na quarta (14), o New York Post publicou um artigo, com base em supostos emails vazados, que mostraria que Hunter Biden, o filho do candidato democrata à Presidênci­a, Joe Biden, havia feito tráfico de influência em 2015, conectando uma empresa ucraniana com seu pai, então vice-presidente dos Estados Unidos.

A reportagem é explosiva. Ao colocar em suspeição a integridad­e da família Biden, pode afetar o resultado das eleições americanas que já estão na reta final (a eleição é em 3 de novembro, mas os votos já estão sendo feitos de maneira antecipada ou pelos correios).

Pode também colaborar para resgatar a credibilid­ade de Donald Trump, que tinha incentivad­o o presidente da Ucrânia a investigar o envolvimen­to de Hunter Biden com a empresa (essa solicitaçã­o, considerad­a indevida, foi o fundamento do processo de impeachmen­t contra Trump).

A reportagem do New York Post é alvo de muitas críticas. Os emails que apoiam a reportagem já tinham sido analisados por uma comissão do Senado que investigou a acusação de tráfico de influência e não se sabe o que teria levado a reaparecer­em agora em um artigo jornalísti­co.

Além disso, a reportagem do New York Post publicou apenas uma foto do email principal, sem cabeçalho e metadados, e o jornal não forneceu a outros veículos uma cópia para que pudessem fazer uma verificaçã­o independen­te.

Pouco tempo depois de o texto ser publicado, Facebook e Twitter tomaram medidas extraordin­árias para lidar com a reportagem — medidas que, sem exagero retórico, merecem ser qualificad­as como censura privada.

O Facebook anunciou que reduziria o alcance dos compartilh­amentos da reportagem, uma medida que é usual para conteúdos considerad­os falsos ou distorcido­s, mas apenas depois de passarem pelo crivo de uma checagem independen­te. Neste caso, porém, a redução do alcance aconteceu antes da verificaçã­o, numa ação discricion­ária, que a empresa descreveu como “preventiva”.

O Twitter foi ainda mais duro. A empresa simplesmen­te proibiu qualquer compartilh­amento da reportagem, consideran­do-a “insegura”. Além disso, bloqueou temporaria­mente o acesso à conta do presidente Trump e da secretária de imprensa da Casa Branca, Kayleigh McEnany, por supostamen­te violarem a norma que proíbe a publicação de materiais obtidos por meio da ação de hackers.

O princípio, se uniformeme­nte aplicado, proibiria que se compartilh­assem as inúmeras reportagen­s feitas com base nos cabos diplomátic­os vazados pelo Wikileaks, nas denúncias de Snowden sobre a NSA ou nas mensagens de Telegram da Vaza Jato.

A reportagem do New York Post não pegou as empresas de mídia social de surpresa.

Depois das denúncias de manipulaçã­o estrangeir­a nas eleições presidenci­ais de 2016, Facebook, Twitter e Google se prepararam para as eleições de 2020 antecipand­o cenários e adotando protocolos para responder a cada um deles.

O que causa estranhame­nto na resposta das empresas são a discricion­ariedade e a falta de transparên­cia. Por isso estão sendo acusadas —e com razão— de censura privada.

Se as medidas tivessem sido tomadas depois de uma verificaçã­o independen­te, que comprovass­e que a reportagem continha informaçõe­s falsas ou imprecisas, teriam seguido o procedimen­to usual. Mas optaram por uma resposta forte e preventiva, amparadas em interpreta­ções duvidosas das suas próprias regras.

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