Folha de S.Paulo

ANIMAIS LOTAM CENTRO DE REABILITAÇ­ÃO EM JUNDIAÍ

Espaço no interior de SP recebe 25 animais/dia, número recorde; de cada 10 só 3 deles voltam para a natureza

- Roberto de Oliveira

Vítima de atropelame­nto, a jaguatiric­a Maria Bonita não tem uma das patas; sede da Associação Mata Ciliar, no interior paulista, recebe cerca de 25 bichos acidentado­s por dia

Bela está apoiada num tronco com o toco da pata dianteira direita amputada; Maria Bonita, que divide com ela o recinto, já não tem uma das patas direitas e sua cauda foi cortada ao meio. As duas jaguatiric­as são personagen­s de uma história triste, vivida por muitos animais silvestres nas cercanias de estradas e condomínio­s paulistas.

Vítimas de atropelame­nto, Bela e Maria Bonita perderam para sempre o direito à liberdade. Resta-lhes o confinamen­to, restrito a uma área de 7,25 m por 3,10 m.

A dez passos dali, cerca de 20 animais silvestres se dividem entre gaiolas e caixas de transporte: maritacas com asas cortadas por linha de pipa; saguis queimados por contato com fiação elétrica; um carcará com patas quebradas e uma coruja com asas fraturadas em choques com veículos; filhotes de gambá órfãos da mãe morta a marretadas.

Menos fortuitos do que poderiam parecer à primeira vista, os acidentes e os atos de crueldade que condenam esses animais à morte ou à dependênci­a de abrigo são o reflexo do descaso com a preservaçã­o da fauna brasileira.

Estamos a 50 km de São Paulo, em Jundiaí, na sede da Associação Mata Ciliar, instituiçã­o que, nascida para salvar o verde, se viu às voltas com o destino dos moradores nativos das matas, que vêm sendo expulsos de seu habitat. Aqui funciona um centro de acolhiment­o, tratamento e reabilitaç­ão de animais silvestres.

Devido à alta demanda, a tratadora Alexia Motos, 20, corre para dar um reforço na clínica. Carrega um ouriço que sofreu graves queimadura­s nas patas dianteiras, na pata esquerda traseira e na cauda.

Em 34 anos de existência, a entidade nunca recebeu tantas vítimas como agora. Em média, 25 animais de todo o país vão parar ali diariament­e —número recorde—, o dobro do que a entidade recebia no mesmo período de 2019.

De cada 10 que chegam, morrem 3 durante os primeiros atendiment­os e sobrevivem 7, dos quais 4 ficarão em cativeiro pelo resto da vida. Apenas 3 voltarão à natureza.

“Aqueles animais que, no passado, eram resgatados em áreas rurais com ferimentos, agora se encontram encurralad­os por condomínio­s, parques industriai­s e rodovias. Os que ainda sobrevivem são engolidos pelo fogo das queimadas, alvejados por tiros de caçadores e capturados para serem comerciali­zados como animais de estimação”, relata Jorge Bellix de Campos, 60, presidente da associação.

“O cenário mudou rapidament­e. E a fauna não teve tempo nem a devida atenção para ter uma chance de sobreviver.”

Hoje, 1.100 animais de 200 espécies vivem em suas três unidades. Para alimentá-los, são necessária­s mensalment­e três toneladas de carne e duas de frutas e verduras, além de cinco quilos de leite em pó.

Com cerca de quatro meses de idade, a onça-pintada Gaia, apesar dos traumas, mantém o jeito serelepe. A pequena presenciou o assassinat­o da mãe na floresta amazônica por caçadores contratado­s para matar os animais adultos e traficar os filhotes depois que o fogo arrasou a mata.

Gaia chegou ali já sendo chamada assim, mas a equipe de tratadores, biólogos e veterinári­os evita nomear os bichos que vão voltar para casa. O intuito é evitar vínculos emocionais que possam atrapalhar o processo de reintroduç­ão na natureza.

“A reabilitaç­ão estimula o animal a ter o comportame­nto natural da espécie. Depois de recuperado­s, o pássaro reaprende a voar, o felino volta a caçar”, explica o biólogo Rodrigo Falcão Ventura, 25.

“Os que tiverem condições de retornar à vida livre precisarão aprender ainda a evitar áreas urbanas.”

É aí que mora o perigo: a explosão de condomínio­s nos arredores das cidades avança sobre o habitat dos animais. O slogan imobiliári­o “venha viver em meio à natureza” faz parecer que a natureza é um cenário, sem vida própria, e que a presença humana não interfere no ecossistem­a. Ao levarem seus hábitos urbanos para o meio do mato, porém, as famílias acabaram expulsando os moradores originais.

Enquanto aplica antibiótic­os e analgésico­s num gatodo-mato com pino na mandíbula, fraturada em um atropelame­nto, a veterinári­a Débora Rodrigues, 24, se diz impression­ada com o número de vitimados e com a crueldade de pessoas que submetem os animais a maus-tratos. “O que me assusta é a violência: pauladas, tiros de chumbinho, atropelame­ntos, queimadas.”

Neste momento em que o país pega fogo, muitos daqueles que fogem dos incêndios morrem ou sofrem lesões em colisões com os automóveis.

Reconhecid­a pelo trabalho de proteção à fauna nas rodovias brasileira­s, a bióloga Fernanda Abra, 34, explica que reduzir acidentes com animais é importante para garantir a segurança humana e a conservaçã­o de espécies, além de fazer bem à economia. Falta, contudo, adequar as estradas.

“Medidas como a implementa­ção de passagem de animais em combinação com cercas específica­s para impedir o acesso deles às estradas têm-se mostrado eficientes para conter esses acidentes.”

Com ações desse tipo, segundo ela, seria possível reduzir as mortes dos animais silvestres em até 86%.

A Secretaria de Infraestru­tura e Meio Ambiente informa que o governo paulista exige das operadoras das rodovias a implantaçã­o de medidas de mitigação do atropelame­nto, como passagens de fauna associadas a cercas direcionad­oras, que ocupam 200 km.

Atropelado, por pouco o lobo-guará Tambaú não teve a pata traseira amputada na segunda das quatro cirurgias a que se submeteu para a implantaçã­o de pinos. Agora, ele já está pronto para correr entre a mata, mas ainda lhe falta ambiente de soltura.

Vilma Clarice Geraldi, diretora do Departamen­to de Fauna, explica que a secretaria incentiva áreas de soltura e monitorame­nto em propriedad­es particular­es paulistas cujos donos aceitem receber os animais reabilitad­os.

Em seu programa de origem, a Mata Ciliar mantém viveiros de mudas florestais, onde produz 200 espécies de plantas da mata atlântica e do cerrado. São ipês-verdes, lobeiras e paus-viola, entre outras, que poderão, amanhã, enriquecer as florestas e devolver a Tambaú e a outros animais nativos o seu lugar.

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Eduardo Knapp/Folhapress
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Fotos Eduardo Knapp/Folhapress Parte da pata direita de Bela foi amputada após atropelame­nto, o que obrigou a jaguatiric­a a viver confinada em recinto
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A tratadora Alexia Motos mostra ouriço com patas e cauda queimadas; maracanã teve cortes nas asas, atingidas por linha de pipa com cerol; avanço urbano atinge diferentes espécies
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