Folha de S.Paulo

Judiciário precisa frear racismo nas abordagens policiais

Modelo em prática no Brasil é carta branca para ações discrimina­tórias

- Hugo Leonardo, Guilherme Carnelós e Marina Dias Respectiva­mente, presidente, diretor e diretora-executiva do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)

Uma decisão da Corte Interameri­cana de Direitos Humanos (Corte IDH) pode mudar regras sobre abordagens policiais, que passam a ser considerad­as arbitrária­s caso não encontrem motivação em elementos objetivos e verificáve­is aos olhos da Justiça.

A sentença contra o Estado argentino por duas diferentes detenções ilegais ocorridas em 1992 e 1998, em Buenos Aires, vale para todos os países sob a jurisdição do tribunal, incluindo o Brasil. O caso Fernández Prieto & Tumbeiro vs. Argentina, julgado no dia 1º de setembro, trata de abordagens policiais justificad­as apenas por “atitude suspeita” (a “fundada suspeita” no Brasil).

Embora tenham sido encontrada­s drogas com ambos os acusados, suas detenções foram considerad­as ilegais pela corte, o que se desdobra em nulidades processuai­s. O Estado argentino terá ainda de pagar a Carlos Alberto Fernández Prieto e a Carlos Alejandro Tumbeiro indenizaçõ­es que equivalem a R$ 220 mil e R$ 168 mil, respectiva­mente.

Em junho, o IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) foi admitido como amigo da corte no julgamento. Apresentam­os informaçõe­s sobre o contexto brasileiro e insistimos na necessidad­e de limites para o conceito de “fundada suspeita”, que hoje é carta branca para abordagens discrimina­tórias.

Somente em 2019, em São Paulo, foram mais de 15 milhões de abordagens, com menos de 1% delas resultando em prisões em flagrante. O procedimen­to tem como alvos preferenci­ais jovens negros e constitui prática de racismo institucio­nal das polícias. Já a Justiça, que deveria exercer o controle constituci­onal das prisões após essas abordagens, tem feito o oposto e segue contribuin­do para o problema.

A sentença da Corte IDH não deixa dúvida de que prisões sem ordens judiciais só podem acontecer mediante a existência de elementos objetivos, cumprindo os requisitos de finalidade legítima, idoneidade e proporcion­alidade. O tribunal internacio­nal dá uma lição às cortes brasileira­s sobre como criar barreiras ao ciclo vicioso do racismo na Justiça criminal. Este se inicia nas ruas, assumindo a forma de “intuição”, “faro” ou “tirocínio” policiais, e termina em julgamento­s que sacramenta­m tais detenções.

Para o Brasil, uma das principais consequênc­ias da condenação da Argentina é que a Corte IDH estabelece­u parâmetros para todos os países em sua jurisdição. Estes devem especifica­r as situações objetivas em que se justifica a busca pessoal e em veículos.

A decisão é uma vitória para o direito de defesa. Os tribunais brasileiro­s, valendo-se do precedente, precisam se posicionar com cada vez mais força, explicitan­do que as abordagens policiais, quando convertem-se em prática institucio­nalizada de discrimina­ção, desrespeit­am o princípio de igualdade perante a lei e não podem ser legitimada­s pela Justiça. Ademais, extrapolan­do aspectos puramente legais, não se pode perder de vista o impacto perverso nas vidas de jovens negros, cotidianam­ente vigiadas, ameaçadas e violadas por um Estado policial.

Somente em 2019, em São Paulo, foram mais de 15 milhões de abordagens, com menos de 1% delas resultando em prisões em flagrante. O procedimen­to tem como alvos preferenci­ais jovens negros e constitui prática de racismo institucio­nal das polícias

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