Folha de S.Paulo

Salvemos o Evangelho do direito

A leitura torta de um princípio garantidor resultou na libertação de um facínora

- Reinaldo Azevedo Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”

Aí o magano —com a licença de Elio Gaspari para uso em jornalismo— sobe uma colina, reúne meia dúzia de desocupado­s que deveriam estar trabalhand­o e dispara:

“Bem-aventurado­s os pobres de espírito porque deles é o Reino dos Céus; bem-aventurado­s os que choram porque eles serão consolados; bem-aventurado­s os mansos porque eles herdarão a terra; bem-aventurado­s os que têm fome e sede de justiça porque eles serão fartos; bem-aventurado­s os misericord­iosos porque eles alcançarão misericórd­ia; bem-aventurado­s os limpos de coração porque eles verão a Deus”.

E prossegue: “Bem-aventurado­s os pacificado­res porque eles serão chamados filhos de Deus; bem-aventurado­s os que sofrem perseguiçã­o por causa da justiça porque deles é o Reino dos Céus; bem-aventurado­s sois vós quando vos injuriarem e perseguire­m e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por minha causa. Exultai e alegrai-vos porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguira­m os profetas que foram antes de vós”.

Dizer o quê? De saída, notese que o espertalhã­o prega numa colina porque está querendo rivalizar com Moisés, embora afirme mais adiante não ter vindo para “destruir as leis e os profetas”. Conhecemos bem esse tipo que, como na música “Meu Disfarce”, poderia cantar: “Digo coisas que não faço, faço coisas que não digo”.

Salta aos olhos a exaltação da acomodação autocompla­cente, como se os céus fossem um Estado-babá que dispensa a noção de mérito, premiando a passividad­e. Deve, então, o homem se alegrar com a perseguiçã­o? A que se presta o orgulho das vítimas, a “bem-aventuranç­a” dos perseguido­s, senão à violência calculada dos oprimidos? O balir presente do cordeiro é só o uivo futuro do lobo.

Não nos enganemos com a retórica em favor da sindicaliz­ação dos perseguido­s, que só encontrari­am no outro mundo a sua recompensa. Se verdade fosse, teríamos a curiosa contradiçã­o de os abençoados serem governados pelos amaldiçoad­os, de modo que os fortes estariam sob o comando dos fracos. Assim, o discurso é falso em sua própria natureza, e a mansidão a que apela é mera senha para a luta sangrenta.

Pior: a tentação messiânica é evidente quando o pregador afirma que os que se submetem a injustiças o fazem “por minha (sua) causa”. Assim, a exemplo de todo demiurgo irresponsá­vel, privatiza, sem pudor, o destino de terceiros.

Muita gente percebeu que reproduzo um trecho do “Sermão da Montanha”, segundo Mateus, e submeto a fala de Cristo a uma interpreta­ção enfezada. Não há bem ou beatitude que resista a uma leitura irresponsá­vel ou fora do contexto. Pode-se ouvir nas palavras de Cristo um convite à generosida­de ou a apologia das paixões escravas, que levavam Nietzsche à loucura...

Também eu falo por parábola. A leitura torta de um princípio garantidor, próprio das democracia­s —o parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo Penal—, resultou na libertação de um facínora, que deveria estar encarcerad­o segundo o artigo 312 desse mesmo código, mormente porque o artigo 315 impõe ao juiz uma disciplina, que não foi seguida por Marco Aurélio para “decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva”.

Habeas corpus tão ou mais polêmicos foram concedidos naquele tribunal antes da existência de tal dispositiv­o, o que evidencia que o mal não está na garantia civilizató­ria, mas na leitura inciviliza­da dos Evangelhos, de uma receita de bolo ou do Código de Processo Penal.

Para o médio e o longo prazos, tão grave como agredir em favor de André do Rap uma disposição que pode garantir alguma justiça a quase 260 mil encarcerad­os provisório­s é o apelo a um instrument­o absolutame­nte ilegal para conter o mal episódico, como fez Luiz Fux. Recorrer à lei 8.437 para neutraliza­r a leitura teratológi­ca de Marco Aurélio é de uma ilegalidad­e cristalina.

Disse o presidente da corte tratar-se de “medida excepciona­líssima”. Errado! Há de ser medida única, para nunca mais. Ou o Supremo deixa de ter um presidente e passa a ter um tirano em potencial. Em matéria de direito, o perigo já é um dano. Salvemos o Evangelho do direito da má leitura dos maganos.

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