Folha de S.Paulo

As ameaças a Talíria Petrone

A violência política no Brasil caminha para inviabiliz­ar a democracia

- Silvio Almeida Professor da Fundação Getulio Vargas e do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama

Talíria Petrone, deputada federal pelo PSOL-RJ, relata que foi notificada de pelo menos seis planos que tinham como objetivo seu assassinat­o. De acordo com a deputada, as primeiras ameaças datam de 2016, quando foi eleita vereadora da cidade de Niterói. Já eleita deputada federal, Petrone foi oficialmen­te informada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro que, em junho deste ano, foram intercepta­das mais de cinco gravações planejando sua morte.

Além de devastar a vida pessoal de quem as recebe, ameaças de morte a parlamenta­res podem significar que a violência política no Brasil ruma a um novo patamar.

Ao que tudo indica, estamos diante da consagraçã­o definitiva da ameaça e do assassinat­o como peças centrais da política institucio­nal. Em teoria, instituiçõ­es têm a função de manter sob controle o potencial destrutivo do conflito político. Nesse jogo institucio­nal, o opositor se torna adversário, e não inimigo, e grupos divergente­s são tratados como “oposição” e não como “facção”.

A situação de Talíria Petrone pode ser o balão de ensaio para que se impeça a livre participaç­ão política, sem suprimir o voto, ou mesmo a possibilid­ade de ser eleito. Quando alguém que almeja a vida política é ameaçado, forçado ao exílio ou assassinad­o sem que isso gere grandes consequênc­ias, o recado me parece evidente: nem tente se candidatar, mas caso se candidate, não vai ganhar; e se ganhar, não termina o mandato.

É bom que se diga que Talíria Petrone não aparece sozinha no quadro da violência política no Brasil. O caso mais emblemátic­o de nossa história recente —o assassinat­o da vereadora Marielle Franco em março de 2018— segue sem resolução. Após desistir de assumir seu terceiro mandato, Jean Wyllys optou por deixar o Brasil devido a constantes ameaças. A escolha do ex-deputado não é sem razão se analisarmo­s os dados sobre violência politica no Brasil. Segundo pesquisa das organizaçõ­es Terra de Direitos e Justiça Global, o Brasil registrou, desde 2016, 125 casos de assassinat­os e atentados contra políticos.

Qualquer cidadão ameaçado deve ser motivo de indignação, repulsa e, mormente, abertura de investigaç­ão. Entretanto, o Brasil é um país em que é muito fácil matar ou fazer desaparece­r alguém, especialme­nte se a pessoa é negra ou pobre. Segundo pesquisa do Instituto Sou da Paz, 70% dos homicídios no Brasil não são solucionad­os.

Em um quadro como esse não há que se falar sequer em democracia formal. Estamos vivendo um grande processo de negação, quase um delírio coletivo. É um país que caminha para uma delinquênc­ia sistêmica, que mata, deixa morrer e que é incapaz de cumprir as próprias leis, como evidencia a situação carcerária e seus milhares de presos sem condenação.

Mais não se poderia esperar de um país em que o presidente e o vice-presidente tomam como exemplo de brasileiro um notório torturador.

É difícil surgir um cenário de valorizaçã­o da vida quando parte da imprensa e do empresaria­do abre mão de qualquer compromiss­o com o país e tenta transforma­r um presidente que já afirmou que sua “especialid­ade é matar” em um moderado, por interesse na manutenção de uma determinad­a agenda econômica.

É importante que fique registrado para o futuro: autoridade­s brasileira­s, ao negligenci­ar a violência política, tornam-se jurídica e moralmente responsáve­is pelos desdobrame­ntos de tais ameaças na vida pessoal dos indivíduos, bem como por todos os prejuízos causados à sociedade brasileira.

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