Folha de S.Paulo

Putin tenta estabiliza­r Quirguistã­o após queda de presidente

- Igor Gielow

O remoto e isolado Quirguistã­o viu cair, nesta quinta-feira (15), o terceiro presidente desde 2005. Como nas outras ocasiões, caberá à Rússia a estabiliza­ção do país de 6,5 milhões de pessoas na Ásia Central.

No poder desde 2017, Sooronbai Jeenbekov estava sob intensa pressão por protestos populares desde o domingo (4), quando uma eleição parlamenta­r sofreu diversas acusações de fraude.

Diferentem­ente do questionam­ento ao pleito presidenci­al em outro vizinho importante para Moscou, a Belarus, ali a repressão policial inicial falhou. Centenas ficaram feridos e ao menos uma pessoa morreu na capital, Bishkek.

Houve cenas inusitadas. Uma turba invadiu a cadeia onde o governo deixava preso o antecessor de Sooronbai, Almazbek Atambaiev, e políticos como o ativista nacionalis­ta Sadir Japarov.

Em resposta aos protestos, o gabinete daquela que é chamada de forma algo complacent­e de única democracia da Ásia Central renunciou. A contragost­o de Sooronbai, sob pressão de Moscou, Japarov assumiu como premiê na quarta-feira (14).

Rapidament­e, Japarov aproveitou que o presidente do Parlamento não assumiu.

Reclamou para si os poderes de Sooronbai. Está incerto se ele tentará envernizar o ato com a promessa de novas eleições. O que parece líquido é o papel do Kremlin. Os protestos de rua não agradam os antigos mestres da região, os russos —que controlara­m o Quirguistã­o a partir do século 19, nos tempos imperiais da dinas- tia Románov (1613-1917), e que integraram o país à União Soviética (1922-1991).

Assim, o governo de Vladimir Putin começou a estabelece­r as regras de transição para estabiliza­r o país. Sooronbai, que não aparecia em público desde a eleição, recebeu na terça-feira (13) o enviado do Kremlin, o vice-premiê Dmitri Kozak.

“As forças de segurança serão obrigadas a usar armas para proteger a residência presidenci­al. Eu não quero entrar na história como o presidente que derramou sangue e atirou nos seus cidadãos”, afirmou ele em comunicado.

Moscou anunciou que congelaria todos os repasses financeiro­s para os quirguizes até que a situação fosse estabiliza­da. De 2012 para cá, foram US$ 250 milhões (R$ 1,4 bilhão sem correção no câmbio de hoje) em ajuda, US$ 700 milhões (R$ 3,9 bilhões) em perdão de dívida e US$ 6 bilhões (R$ 33 bilhões) em investimen­tos russos.

São números relativame­nte baixos, mas o país é bastante pobre e desigual.

Montanhoso e sem rede de transporte interno confiável, ele é dividido em um sul agrário e o norte mais desenvolvi­do, com indústrias e centros acadêmicos trazidos da Rússia europeia pelos soviéticos após a invasão nazista de 1941.

Cerca de 40% do Produto Interno Bruto do país se concentra apenas na capital.

O onipresent­e chanceler russo, Serguei Lavrov, por sua vez, conversou com seu colega quirguiz por telefone e exortou o país aliado a se estabiliza­r rapidament­e.

Apesar do rótulo democrátic­o, afiliações tribais comandam a política local. Anteriorme­nte, o Kremlin já havia ajudado a derrubar um governo que não lhe agradava, em 2010.

Isso porque ele não fechava a base aérea que os Estados Unidos mantinham no território para apoiar suas operações no vizinho Afeganistã­o.

Agora, o trabalho foi mais de contenção de danos. Os russos mantêm uma base aérea no país desde 2003, o que tornou o Quirguistã­o um bizarro exemplo de sede de instalaçõe­s militares de Moscou e de Washington até 2015, quando os americanos enfim foram embora.

Dentro da visão geopolític­a, o Quirguistã­o fornece a chamada profundida­de estratégic­a ante a vizinha China. Isto é, um tampão que separa países potencialm­ente rivais na economia e no poderio militar.

Aparenteme­nte Putin controlará o problema sem as dificuldad­es que enfrenta no sul do Cáucaso e na Belarus.

“Bishkek sempre se beneficiou da generosida­de russa, então tem pouco motivo para abandonar Moscou pela China, que tem interesse em operações de mineração por lá, pelos Estados Unidos ou pela União Europeia”, escreveu Ekaterina Zolotova, da consultori­a americana Geopolitic­al Futures.

Em ambos os casos, o motivo de interesse é semelhante, embora mais importante: estabiliza­r as antigas fronteiras imperiais e soviéticas, além de manter um espaço de influência. O Cáucaso e o Leste Europeu sempre foram as principais portas de entrada de exércitos rivais na Rússia.

No caso da guerra entre armênios e azeris em torno da região de Nagorno-Karabakh, Putin tem Ierevan como aliada e uma base militar no país.

Mas tenta equilibrar sua mediação com Baku porque também visa enfraquece­r a Turquia, que banca a atual aventura militar do Azerbaijão — de resto, um país rico em gás e petróleo no mar Cáspio.

O caso é complexo, comparado ao quirguiz, porque há entrechoqu­e direto entre potências regionais rivais, e os turcos são parte da aliança militar ocidental, a Otan.

Isso explica em parte a dificuldad­e de Moscou em fazer valer o cessar-fogo que mediou no fim de semana na região, que ainda vive combates. Ainda assim, sua posição valeu a Putin um inédito apoio dos EUA e da Europa para tentar solucionar a crise.

Já na Belarus, a crise política deixou o ditador Aleksandr Lukachenko mais vulnerável aos desígnios de Moscou, algo contra o que ele sempre lutou desde que assumiu o poder, há 26 anos.

Os países estreitara­m laços militares, mas é fato que rivais do regime na elite do país tenderiam a uma acomodação rápida com o Kremlin —diferentem­ente da Ucrânia, desde 2014 em colisão com a Rússia, o sentimento contra Moscou não é prevalente.

Com o caso quirguiz encaminhad­o, ao que tudo indica, agora Putin poderá dedicar tempo para lidar com esses dois outros abacaxis estratégic­os.

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