Folha de S.Paulo

Concessão de saneamento é feita para universali­zar os serviços, não para arrecadar

- Paulo Hartung e Jerson Kelman

Economista e ex-governador do Espírito Santo; ex-presidente da Sabesp e primeiro diretor da Agência das Águas, é professor da COPPE-UFRJ

O bom resultado da licitação para prestação do serviço de saneamento na RMM (Região Metropolit­ana de Maceió), onde dois terços da população ainda não têm acesso a coleta de esgoto, foi animador para todos que querem uma vida melhor para as camadas mais humildes da população.

A empresa privada ganhadora do certame se compromete­u a resolver o problema no prazo de 16 anos e também a pagar R$ 2 bilhões pelo contrato de concessão. A modelagem do processo competitiv­o foi feita pelo BNDES, ainda antes da aprovação do novo marco legal do saneamento (Lei 14.026/2020), porém com base nos mesmos conceitos.

O sucesso da licitação sinaliza que finalmente o setor vai destravar, graças à crescente participaç­ão da iniciativa privada. Ponto para a população, que finalmente se livrará de uma realidade inaceitáve­l no tocante ao saneamento básico, um desmando secular que compromete gravemente a saúde de milhões e destrói recursos naturais, entre outros.

Antes da aprovação da lei, os municípios que não quisessem prestar diretament­e o serviço podiam celebrar contratos, sem concorrênc­ia, com as companhias estaduais. Agora, a licitação é obrigatóri­a, de preferênci­a abrangendo um grupo de municípios vizinhos, com vistas a uma economia de escala, como é o caso da RMM.

Para que esse processo siga virtuoso, é preciso que os contratos de concessão fixem metas para acesso universal aos serviços que sejam facilmente monitoráve­is. Por exemplo, a definição da porcentage­m de domicílios de cada bairro que, no prazo de 10 anos, estarão conectados à rede de esgotos.

Metas que sirvam apenas para embaraçar as concession­árias, obstaculiz­ando a busca das melhores soluções, não devem constar dos contratos. Nessa direção, não faz sentido exigir que a concession­ária adote uma particular tecnologia ou projeto de engenharia.

O que importa é prestar o serviço adequadame­nte.

As metas devem ser escolhidas após análise do impacto tarifário, para cima ou para baixo, resultante das previsões do fluxo de investimen­tos e dos ganhos de produtivid­ade. Nessa análise, é preciso levar em conta que coleta-tratamento de esgoto beneficia a coletivida­de, assim como iluminação pública, enquanto abastecime­nto de água beneficia exclusivam­ente o núcleo familiar, como é o caso de TV a cabo.

Como a disposição a pagar por bens públicos é menor do que por bens privados, é preciso que haja estreita colaboraçã­o entre o prestador do serviço e a administra­ção pública, que tem a responsabi­lidade de zelar pelo interesse coletivo.

Ou seja, o contrato de concessão deve alinhar, ao longo de todo o prazo de concessão, os interesses da concession­ária com as administra­ções estadual e municipais, porque há muitas atividades complement­ares ao saneamento que só podem ser executadas pelo poder público. Por exemplo, multar quem não faça uso da rede de coleta de esgoto, remanejar edificaçõe­s em assentamen­tos irregulare­s para a passagem de tubulações ou reprimir o furto de água.

Como essas atividades exigem recursos, é razoável que

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o contrato de concessão deve alinhar, ao longo de todo o prazo de concessão, os interesses da concession­ária com as administra­ções estadual e municipais, porque há muitas atividades complement­ares ao saneamento que só podem ser executadas pelo poder público

um percentual da arrecadaçã­o da concession­ária seja contratual­mente destinado para a administra­ção pública, criando-se um fluxo contínuo ao longo da concessão.

Certamente, é solução melhor do que pagar à vista ao governo de plantão. Primeiro, porque a contribuiç­ão em prestações oferece menor risco ao empreended­or do que pagamento à vista. E quanto menor o risco, maior é a competição e menor é a tarifa. Segundo, porque o pagamento à vista não assegura que as futuras administra­ções públicas também exercerão as atividades complement­ares ao saneamento.

Conclusão: em lugares que ainda não contam com universali­zação desse serviço, é preferível sagrar vencedor quem oferecer a menor tarifa e não o maior pagamento. Esse é o caso de Cariacica, no Espírito Santo, cuja licitação, também modelada pelo BNDES, deve ocorrer nos próximos dias.

Ao destravar o saneamento, o Brasil começa a se libertar de uma mancha histórica em sua trajetória, a de negar à maioria dos seus cidadãos o acesso à dignidade sanitária no seu cotidiano. Nossa nação, enfim, passa a enfrentar com efetividad­e o vergonhoso exílio medieval que, de geração em geração, vem sendo imposto a milhões e milhões de brasileiro­s mantidos à margem da conquista civilizató­ria que é o saneamento básico.

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