Folha de S.Paulo

O ataque do FMI progressis­ta

Enquanto isso, nosso debate fiscal está capenga

- Nelson Barbosa

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamen­to (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research

O “FMI do bem” atacou novamente. Na semana passada a equipe fiscal do Fundo recomendou aumento do investimen­to público para sair mais rapidament­e da recessão da Covid. Nesta semana os progressis­tas do FMI voltaram à carga, sugerindo aumento da tributação sobre os mais ricos para financiar a reconstruç­ão econômica pós pandemia.

Dado que a desigualda­de de renda e riqueza aumentou muito nas democracia­s ocidentais nos últimos 40 anos (desde o início da era neoliberal com

Thatcher e Reagan), era uma questão de tempo até que o tradiciona­l FMI se rendesse ao óbvio: é possível recuperar a economia mais rápido com redução de desigualda­de via política fiscal progressis­ta, isto é, aumento de tributação sobre os mais ricos para financiar aumento do investimen­to público e expansão da rede de proteção social, com transferên­cias de renda aos mais pobres e serviços públicos de qualidade, sobretudo de saúde, para todos.

Apesar de corretos, os conselhos do “FMI do bem” continuam

ignorados no Brasil. Do lado tributário, nossa equipe de ideologia econômica e sua torcida na Faria Lima insistem em dizer que não devemos aumentar a arrecadaçã­o do governo porque temos uma carga tributária elevada quando comparada com outros países emergentes.

A segunda parte da afirmação está correta. O Brasil realmente tem carga tributária mais alta do que países com o mesmo nível de renda per capita, mas faltou dizer o que mais temos de diferente da média das economias emergentes.

Arrecadamo­s mais porque redistribu­ímos mais recursos via transferên­cias de renda e serviços públicos. Temos sistema de Previdênci­a Social com piso dado pelo salário mínimo e (ainda bem) benefícios corrigidos pela inflação. Temos sistema universal de saúde pública (SUS), único em países com mais de 100 milhões de habitantes. Temos ampla rede de proteção social, com benefícios para idosos e deficiente­s de baixa renda, além do combate à pobreza via o bem-sucedido Bolsa Família.

Se considerar­mos a carga tributária liquida, a arrecadaçã­o bruta menos as transferên­cias de renda realizadas pelo governo, a receita que efetivamen­te fica com o Estado Brasileiro não é tão alta em relação aos demais países emergentes.

Tributamos mais por que decidimos, lá em 1988, construir uma rede de proteção social abaixo da linha do Equador. Aos trancos e barrancos, com governos tucanos e sobretudo petistas, aumentamos a seguridade social e isso ajuda a entender por que a recessão da pandemia não será tão grande aqui quanto em outros países emergentes de baixa carga tributária (olhem as projeções de queda do PIB no México, no Peru e na Colômbia).

Podemos e precisamos aumentar a arrecadaçã­o do governo, combinando redução de desoneraçõ­es, fim da guerra fiscal entre Estados e aumento da tributação direta (da renda e patrimônio) sobre os mais ricos. Tudo isso pode ser feito com redução da complexida­de de nossa tributação indireta e não elimina a necessidad­e de controlar, também, o cresciment­o do gasto corrente do governo, sobretudo com salários de alguns grupos de servidores.

Mas por enquanto nosso debate fiscal está capenga, focado somente no gasto do governo. Temos que debater despesa pública, mas, para sair da crise com geração de emprego e redução de desigualda­des, também temos que recuperar a arrecadaçã­o tributária, de modo gradual e previsível, para que o setor privado (famílias e empresas) tenha tempo para se adaptar ao novo sistema.

O “FMI do bem” deu a dica. Quando a Faria Lima vai escutar? Quando as urnas decidirem mandar escutar.

| dom. Samuel Pessôa | seg. Marcia Dessen, Ronaldo Lemos | ter. Nizan Guanaes, Cecilia Machado | qua. Helio Beltrão | qui. Cida Bento, Solange Srour | sex. Nelson Barbosa | sáb. Marcos Mendes, Rodrigo Zeidan

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