Folha de S.Paulo

O bolsonaris­mo de sempre

Um mix de naftalina com desodorant­e Polo Ralph Lauren

- Tati Bernardi Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”

Estava com a minha filha na piscininha infantil do clube (com capacidade para mais de cem pessoas, porém estão liberando apenas dez e por uma hora —me julguem, mas criança precisa tomar sol) quando comecei a sentir o cheiro: um mix de naftalina com desodorant­e Polo Ralph Lauren. O sujeito usava uma bermudona cargo com motivos militares e umas pulseiras grossas de prata. Tentei manter distância, mas ele ria, falava alto e se aproximava, conversand­o com um bombadão de regata e cabelo raspado: “A mulher tava na vontade, voltei todo esfolado… Ela tinha um bundão, mas era mole e cheio de espinhas”.

Senti meu fígado revirar 17 vezes e, quando isso acontece, preciso pôr para fora rapidament­e. Ou seja, preciso escrever. Ainda é possível, no que nos resta de democracia, ridiculari­zar esses tipos detestávei­s, e o espaço neste jornal é a minha vingança.

Pela conversa entendi que o primeiro, recém-separado, estava “de volta ao crime” e o segundo, casado e ignorando uma criança doida por afeto na piscina (o menino de uns seis anos ameaçou chorar porque os olhos estavam ardendo, e o pai fez uma expressão “larga de frescura”), assumia o papel de plateia machista “bato palminha pro seu pênis porque, infelizmen­te, é o mais próximo que me permito chegar dele”. Ao perceber minha cara de nojo, a dupla resolveu aumentar ainda mais os decibéis e os absurdos.

O bermudona cargo então começou a falar que fez questão de “foder a ex-mulher” na separação: “Ela veio com um papo de que tinha não sei quantos por cento da casa, por causa de uma ajuda que deu quando compramos, e eu deixei bem claro: se quiser levar um vaso, vai ser porque eu atirei ele na sua cabeça”. Disse ainda que ela foi para as redes sociais contar “o que estava passando”. Ao que o segundo interveio: “Minha mulher viu e ia começar a defender essa palhaçada, mas eu fechei a cara e ela calou a boca rapidinho”.

Dando sequência ao desfile orgulhoso de canalhice, o bombadão passou a depreciar uma professora da academia do clube: “É muito sem noção, né? A mulher é gorda e quer ser personal”. O outro começou a rir descontrol­adamente: “Hoje em dia não dá mais pra falar mal de gorda, ainda mais sendo professora… O que mais tem é gente defendendo gorda e professor!”. E me olhavam. Provocavam. Talvez pelo meu semblante chocado; talvez porque eu fosse uma mulher sozinha com uma criança e eles achassem que uma mulher sem um macho ao lado não mereça respeito; talvez porque eu não tenha o corpo que eles considerem atraente e isso seja ofensivo às mulas que acreditam realmente que existimos para agradá-los; talvez porque saibam que eu escrevo e eles se tornariam personagen­s (sem bem que eu duvido que leiam qualquer coisa).

Eu estava ali com a minha filha, uma menininha que ainda não tem nem três anos. E pensei que, em vez de vomitar e me sentir desvitaliz­ada e consternad­a, eu preciso é durar mais 80 anos. O tempo necessário para jogar meu corpo na frente do dela, levar qualquer cuspe ou tiro antes, protegê-la, tapar seus ouvidos com músicas bonitas e afagos. Como minha mãe deve ter sofrido a cada vez que eu, muito jovem e tonta, saí de casa na esperança de encontrar “o amor”. E cruzei com tantos desses tipos. E voltei me achando um lixo. Demorou até eu perceber que o cheiro de chorume vinha de fora.

Antes de terminar o tempo permitido na piscina, eu ouvi os dois acabando com a raça do atual presidente. Isso atesta que o bolsonaris­mo é muito anterior e será muito posterior a tudo o que está acontecend­o. O bolsonaris­ta, muitas vezes, nem eleitor do Bolsonaro é.

| dom. Antonio Prata | seg. Tabata Amaral, Thiago Amparo | ter. Vera Iaconelli | qua. Ilona Szabó de Carvalho, Jairo Marques | qui. Sérgio Rodrigues | sex. Tati Bernardi | sáb. Oscar Vilhena Vieira, Luís Francisco Carvalho Filho

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