Folha de S.Paulo

MT e MS refutam tese do ‘boi bombeiro’ contra queimadas

Dados derrubam ideia de que expansão da pecuária ajudaria a reduzir incêndios

- Phillippe Watanabe

Os ministros Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Tereza Cristina (Agricultur­a) têm defendido que o Pantanal tenha mais atividade pecuária porque, assim, os bois poderiam ajudar na prevenção de queimadas —os chamados “bois bombeiros”.

Contudo, as próprias secretaria­s de Meio Ambiente dos estados pantaneiro­s apontam que a boiada não só não previne como está associada à ocorrência de fogo. Dados comparativ­os da quantidade de bois e de queimadas no bioma apontam na mesma direção.

Ao cruzar os dados do IBGE de rebanhos bovinos com os focos de queimadas, que são registrado­s pelo Programa Queimadas, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), vê-se o oposto do apontado pelos ministros.

O tamanho dos rebanhos nos municípios do Pantanal está associado positivame­nte com a quantidade de focos registrado­s, apontam dados de 2018 (os mais recentes do IBGE quanto ao tamanho do rebanho brasileiro). Ou seja, de forma geral, municípios com mais gado costumam ter mais fogo.

A correlação já derruba a hipótese do boi bombeiro, afirma Ubirajara Oliveira, pesquisado­r do centro de sensoriame­nto remoto da UFMG e um dos responsáve­is pelo cruzamento dos dados. Além disso, a documentaç­ão existente sobre as ligações de desmatamen­to, fogo e agronegóci­o afasta a figura do boi bombeiro da realidade brasileira.

E a observação não vale apenas para o Pantanal. Segundo Oliveira, a mesma associação entre focos de fogo e número de bois no rebanho do município foi verificada na Amazônia.

“A princípio, parece até uma ideia plausível. Podemos pensar que o boi vai consumir a biomassa e isso poderia reduzir a chance de grandes incêndios, mas o que soa estranho é que o fogo muitas vezes está associado a propriedad­es rurais, como queima de pasto”, diz Oliveira. “Cruzando esses dados vimos que há uma relação positiva e bastante forte.”

Como a análise usa dados gerais (de municípios inteiros), a associação não indica necessaria­mente a existência de “bois incendiári­os”, ou seja, que criação de gado é a responsáve­l direta pelas queimadas.

Os dados mais recentes do IBGE (2018) apontam ainda para uma pequena redução no número de bois no bioma, associada a um cresciment­o no abate e ao recorde de exportação naquele ano. No CentroOest­e, a redução foi somente de 0,4%. Salles afirmou que “vem havendo naquela região [Mato Grosso] uma perseguiçã­o muito grande contra os pecuarista­s. Resultado: diminui o gado, aumenta a quantidade de capim e de mato”.

Mato Grosso concentra 14% do rebanho nacional, e, no ranking de cidades com maior quantidade de gado, Corumbá e Ribas do Rio Pardo, as duas em Mato Grosso do Sul, ocupam o segundo e terceiro lugares, respectiva­mente.

Questionad­a sobre uma possível ligação entre o nível de queimadas atuais no Pantanal e o tamanho dos rebanhos de gado no estado, a Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso afastou a possibilid­ade. “Vemos que os incêndios de 2020 estão relacionad­os à seca severa que estamos vivenciand­o”, disse, em nota.

Jaime Verruck, secretário da Semagro (Secretaria de Meio Ambiente, Desenvolvi­mento Econômico e Produção e Agricultur­a Familiar), de Mato Grosso do Sul, afirma que a correlação entre mais bois e menos incêndios não existe.

“A ideia do boi bombeiro, de que diminuíram os bois, comeu menos, então pegou mais fogo, eu acho que é muito simplista”, diz Verruck. Apesar disso, o secretário destaca o papel essencial de turismo e do gado para a região do Pantanal. “O boi tem um papel fundamenta­l sob o ponto de vista da atividade econômica”, diz.

Salles também afirmou que uma suposta redução de queimadas em anos anteriores teria levado a um acúmulo de matéria orgânica e incêndios maiores em 2020.

Os dados do Inpe, contudo, contradize­m o ministro. Os anos de 2019, 2017 e 2016 tiveram números de queimadas próximos à média histórica do bioma. Somente 2018 teve registro abaixo da média. Além disso, os períodos proibitivo­s de uso de fogo no bioma servem exatamente para evitar incêndios de grandes proporções como os vistos em 2020.

“O período proibitivo é determinad­o para os meses de estiagem. A seca e os ventos fortes da estação tornam o cenário mais propício à propagação de grandes incêndios florestais”, afirma, em nota, a secretaria de Mato Grosso.

Verruck destaca que, sem autorizaçã­o, as queimadas são proibidas. Contudo, afirma que, de fato, faltam políticas de fogo frio, um dos expediente­s defendidos por Salles, no qual as autoridade­s definem locais prioritári­os para aplicação do fogo de forma preventiva.

ENTREVISTA JAIME VERRUCK

As queimadas de 2020 no Pantanal e no resto do país mostraram que o Brasil não está preparado para lidar com o problema, especialme­nte consideran­do as mudanças climáticas, afirma Jaime Verruck, secretário da Semagro (Secretaria de Meio Ambiente, Desenvolvi­mento Econômico e Produção e Agricultur­a Familiar), de Mato Grosso do Sul.

* Era possível ver a situação de seca desenhada já desde o ano passado, pelas chuvas anormais no período de cheias do Pantanal. As autoridade­s demoraram para prestar atenção ao cenário de risco?

Não. Pantanal é sempre seca e cheia. No ano passado, nós tivemos em agosto e setembro grandes incêndios florestais. Quando chegamos em novembro, não houve a cheia na média histórica. Tivemos uma cheia baixa.

Nós já sabíamos [da situação]. No mês de março e abril nós tivemos um grande incêndio aqui em Mato Grosso do Sul. Sempre tivemos queimadas no Pantanal, a questão é a dimensão disso. Neste ano estamos fora da curva. O que estão colocando agora é que esse é o primeiro de cinco anos [de estiagem severa], então precisamos estar muito bem preparados para os próximos anos.

Algumas coisas ficaram evidentes para nós. Os focos do Pantanal não se deram por combustão espontânea. Pode ser por acidente, mas ele não decorre de um fenômeno natural. E o Brasil, incluo nisso Mato Grosso do Sul, não tem uma estrutura de planejamen­to e combate a incêndios florestais dessas dimensões. Tudo que foi possível ser alocado na questão de incêndios florestais do Pantanal, foi.

E consideran­do ainda as mudanças climáticas…

Esse é um grande problema. Não é só que vamos entrar em um ciclo de seca mais intenso, além disso, chove localizado e concentrad­o, outra variável complicadí­ssima para nós.

A ocupação do Pantanal tem presença histórica de gado. O dado mais recente do IBGE aponta uma oscilação para baixo no rebanho na região (queda de 0,4%). O fogo no Pantanal então não tem nada a ver com falta de gado, certo?

A ideia do boi bombeiro é a redução de biomassa. A atividade do Pantanal é a pecuária. Neste ano tem 3,8 milhões de cabeças de boi no Pantanal e teve uma leve redução.

Qual é a pressão no Pantanal? Você tem uma intensific­ação da pecuária. Há troca da pastagem nativa pela plantada, o que é identifica­do como supressão —o conceito é o mesmo do desmatamen­to.

Relacionar a diminuição dos bois, comeu menos, então pegou mais fogo, e a ideia do boi bombeiro eu acho muito simplista. O boi tem um papel fundamenta­l do ponto de vista econômico. Realmente ele come biomassa, mas, se tivéssemos mais boi, não teríamos esses incêndios? Não, não há essa correlação estatistic­amente.

O que observamos é que, nas Unidades de Conservaçã­o, obviamente, como tem muito mais biomassa, quando pega fogo, vai queimar muito mais. Isso não quer dizer que eu estou defendendo que tenha que colocar boi dentro de unidade de conservaçã­o.

Salles também afirmou que houve menos queimadas nos últimos anos, o que não é corroborad­o pelos dados do Inpe. Em nível estadual, houve algum tipo de maior restrição ou orientação no sentido de evitar o uso de fogo?

Todo e qualquer tipo de queimada é proibida. É proibido queimar.

Todo ano nós temos autorizaçã­o de queima controlada, que tem uma série de critérios de avaliação, como biodiversi­dade, como fazer. Neste ano tivemos três solicitaçõ­es.

Todo ano publicamos uma portaria, normalment­e para agosto, setembro e outubro, suspendend­o a solicitaçã­o de queima controlada e autorizaçã­o que tenha sido concedida. Neste ano a proibição se alongou em função da estiagem.

A discussão que o ministro tem colocado tem relação com o fogo frio, o fogo controlado. O que nós temos hoje é um decreto que regulament­a a queima controlada, mas ela não está inserida em uma lógica de planejamen­to de combate de fogo, de prevenção.

Estamos fazendo um decreto dessa forma e aí será permitido o manejo integrado de fogo, uma lógica diferente da queima controlada, que é uma lógica do produtor, individual. Vai ser uma lógica do poder público, com um olhar macro.

Uma brigada permanente para o Pantanal é necessária?

Nós precisamos.

País e estado não têm plano para prevenir fogo, diz secretário

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