Folha de S.Paulo

Licenças poéticas não atrapalham o eficiente drama ‘Os 7 de Chicago’

Longa traz os diálogos certeiros de Aaron Sorkin, diretor e roteirista com uma visão mais progressis­ta sobre a política

- Patrícia Campos Mello

STREAMING Os 7 de Chicago **** * EUA, 2020. Direção: Aaron Sorkin. Elenco: Eddie Redmayne, Alex Sharp e Sacha Baron Cohen. Disponível na Netflix

Aaron Sorkin começou a escrever o roteiro de “Os 7 de Chicago” em 2006. A ideia era reconstitu­ir os protestos contra a Guerra do Vietnã em 1968, em Chicago, que acabaram em quebra-quebra, e o histórico julgamento dos líderes das manifestaç­ões. Depois de idas e vindas, ele retomou o projeto em 2017, também como diretor, e terminou de filmar bem antes dos protestos do Black Lives Matter.

Mas é impossível não enxergar um símile de 1968 nos confrontos entre manifestan­tes e policiais de maio deste ano.

“Os 7 de Chicago” abre com imagens do fim dos anos 1960, quando o então presidente Lyndon Johnson anuncia sua decisão de enviar um número ainda maior de soldados para lutar na Guerra do Vietnã.

As tensões sociais estavam prestes a explodir. Bob Kennedy e Martin Luther King haviam sido assassinad­os naquele ano. Foi nesse contexto que diversas organizaçõ­es convocaram uma manifestaç­ão em frente à convenção democrata que se realizaria em Chicago em 1968. O objetivo era pressionar o indicado pelo partido, Hubert Humphrey, a sair da guerra se fosse eleito.

Cerca de 10 mil jovens chegaram a Chicago para cinco dias de protestos e shows de música. Foram recebidos por milhares de policiais orientados pelo então prefeito democrata Richard Daley a não deixar que nada nem ninguém estragasse a convenção.

O resultado foi um quebra-quebra pela cidade toda, com centenas de feridos por policiais e 700 pessoas presas.

O republican­o Nixon derrotou Humphrey na eleição de 1968. Ao assumir, quis passar um recado para os movimentos de protesto contra a guerra —orientou o Departamen­to de Justiça a indiciar seus líderes, que ficaram conhecidos como os sete de Chicago, pelos crimes de conspiraçã­o e de cruzar fronteiras estaduais para promover tumultos.

No filme de Sorkin, esses líderes são interpreta­dos por um time luxuoso. Sacha Baron Cohen é Abbie Hoffman, o irreverent­e ativista do movimento dos yippies, que havia tentado levitar o Pentágono para acabar com a guerra.

Eddie Redmayne é o certinho Tom Hayden, o líder dos Estudantes para uma Sociedade Democrátic­a, que contabiliz­ava os soldados mortos no Vietnã e propunha lutar usando o sistema. Há ainda Jeremy Strong na pele de Jerry Rubin, o lisérgico parceiro de Hoffman no movimento de contracult­ura. Frank Langella brilha como o juiz perverso, Julius Hoffman, e Mark Rylance como um dos advogados .

Os sete originalme­nte eram oito. Bobby Seale, papel de Yahya Abdul-Mateen 2º, era o presidente dos Panteras Negras e fora incluído na acusação inicial, embora tivesse passado só quatro horas na cidade e não tivesse nenhuma relação com os outros líderes. Seu processo acabou separado dos outros, mas antes ele foi submetido a humilhaçõe­s.

Numa das cenas mais impactante­s do filme, o juiz manda policiais controlare­m Seale, que gritava “porco racista” do banco dos réus. Ele protestava porque seu advogado, que havia sido hospitaliz­ado, não podia estar presente, e o juiz não havia permitido o adiamento do julgamento. O ativista foi amordaçado e amarrado e assistiu ao resto do julgamento desse jeito.

O diretor faz questão de mostrar a diferença entre os sete de Chicago, todos brancos, em posição bem mais confortáve­l do que Seale, um ativista negro, acusado falsamente, cujo amigo, Fred Hampton, também dos Panteras Negras, fora assassinad­o pela polícia na mesma época.

O julgamento se estendeu por cinco meses e foi um circo. O juiz Hoffman era abertament­e hostil aos réus. Fora do tribunal, manifestan­tes protestava­m, gritando “o mundo inteiro está vendo”.

O filme tem diversas licenças poéticas. O promotor Richard Schultz, é interpreta­do por Joseph Gordon-Levitt como um sujeito correto, com crises de consciênci­a ao perceber que o juiz é parcial. Na realidade, Schultz desempenho­u a função de pitbull de Nixon, que não hesitava em partir para a jugular dos réus.

Mas isso não compromete “Os 7 de Chicago” que é, na essência, um eficiente drama de tribunal. Com seus diálogos certeiros, Sorkin, um progressis­ta convicto, consegue transmitir no filme sua visão da política americana atual, ao opor o juiz conservado­r e inflexível a um grupo de jovens de esquerda, revolucion­ários.

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