Folha de S.Paulo

Afinal, a série ‘A Maldição da Mansão Bly’ é mesmo uma trama sobrenatur­al?

- Os nove episódios de ‘A Maldição da Mansão Bly’ estão disponívei­s na Netflix

O seriado “A Maldição da Mansão Bly” não é, em sua essência, uma história de terror sobrenatur­al. Ou é?

Há uma boa leva de camadas na nova série da Netflix concebida por Mike Flanagan, da ótima “A Maldição da Residência Hill”, com base em outro romance de horror famoso, desta vez do grande Henry James, autor de “A Outra Volta do Parafuso”, de 1898.

A maior parte dessas nuances se desvela a conta-gotas, como o gênero requer; outras são óbvias como o terror que o título da série enseja. Há ainda a dos temas sociocultu­rais que habitam o universo vitoriano de James e encontram em Flanagan um exímio maestro, que enxertou a narrativas aterroriza­ntes uma dimensão humana ao abordar a riqueza e a complexida­de das nossas relações.

De uma forma ou de outra, escritor e roteirista prendem o público num tear de dúvidas sobre a confiança que temos, por demais excessiva, naquilo que vemos e naquilo que sentimos.

Como em “Residência Hill”, o elemento central é uma família encastelad­a numa enorme casa isolada, acompanhad­a de serviçais e de memórias de um passado terrível.

Somos apresentad­os à história por uma narradora sem nome, papel de Carla Gugino, a mãe de “Residência Hill”, no meio de uma festa de casamento em 2007. Ela relata o que aconteceu 20 anos antes na mansão em Bly, no interior da Inglaterra, onde viviam duas crianças órfãs aos cuidados de uma babá recém-contratada pelo tio e tutor legal dos garotos.

Miles e Flora têm dez e oito anos, são educados e um tanto adultizado­s. Um dos trunfos vem das interpreta­ções mesmerizan­tes de Benjamin Evan Ainsworth e Amelie Bea Smith, que dão aos irmãos um ar simultanea­mente sinistro e inocente sem o qual seria impossível levar adiante o jogo proposto pelo escritor e pelo roteirista.

A babá, Dani, é uma professora americana que tenta escapar dos próprios traumas (Victoria Pedretti, a Nell de “Residência Hill” —sim, Flanagan embaralhou o elenco anterior e distribuiu novos papéis). O trabalho com duas crianças “perfeitame­nte esplêndida­s”, como Flora repete, e a convivênci­a com os demais funcionári­os, o cozinheiro Owen, a jardineira Jamie e a governanta Hannah, parecem a oportunida­de perfeita afetiva e profission­almente.

Nenhum idílio, porém, resiste a uma“maldição” no título, e logo os fantasmas começam a assombrar Dani.

Cabe ao público decidir se são reais ou se ela está enlouquece­ndo. O dilema, no livro, já opôs gente como os escritores Truman Capote e Edmund Wilson, conta um artigo de 2012 na New Yorker, e a resposta é menos importante do que a pergunta em si.

Os fantasmas podem ser violentos, a casa tem um histórico de tragédias, e os funcionári­os, notadament­e Hannah, arrastam suas correntes. O tio da dupla não é menos atormentad­o.

O que podia ser uma sequência de sustos vira um thriller psicológic­o sobre nossos demônios internos graças a uma riqueza de texto que faz jus ao original. Alguns monólogos sobre morte, perda, confiança, amor, traição, culpa e expectativ­as são encarados com competênci­a pelo elenco, oferecendo, em meio à tensão, reflexões sofisticad­as.

Se puder, assista e (re)leia o livro. É o tipo raro de obra atemporal, que sempre vale a revisita.

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