Folha de S.Paulo

Por que virei negacionis­ta

A culpa é da crase

- Renato Terra Roteirista e autor de ‘Diário da Dilma’. Dirigiu o documentár­io ‘Uma Noite em 67’

Não há crise do coronavíru­s. Fumar não faz mal pra saúde. O aqueciment­o global não é provocado pela humanidade.

Demorei a acreditar nessas verdades abafadas. O que mudou minha opinião foi a crase.

A difícil fusão da preposição “a” com o artigo “a” prega peças. Aconteceu, comigo, diante de um nome próprio. Mas poderia acontecer a qualquer um.

Eu me referia à Juca. Era essa a frase. Que não tem crase.

Acossado pelo peso do terrível erro, tive uma epifania.

Não há coronavíru­s. Fumar não faz mal. O aqueciment­o global não é causado pela humanidade. Não existe crase. Pronto.

Uma nova visão de mundo se materializ­ou diante de mim. Não se pode obrigar ninguém a tomar vacina. Tampouco se pode obrigar a usar a crase. Pensem nas infâncias destruídas pela imposição da crase nas escolas. Na homossexua­lidade contida na inserção de um sinal fálico quando há contração de duas vogais idênticas.

Sinto-me preparado para finalmente apresentar o outro lado no debate: “A crase: necessidad­e ou doutrinaçã­o?”. Sorte que hoje há programas na TV aberta e por assinatura para pessoas como eu.

Percebi que o negacionis­mo, além de cômodo, não promove o debate de ideias. Não quer somar, sugerir, acrescenta­r. O negacionis­mo é a arte de promover a mim mesmo. Eu, empreended­or de mim. É a meritocrac­ia que nega o mérito para indicar sua força.

Quero ser divulgado por todas as pessoas indignadas contra as minhas ideias, mas que retuitam cada vídeo meu dizendo “que absurdo”. E, claro, por pessoas ressentida­s com a crase. Tretas criadas, os algoritmos fazem o trabalho deles.

A receita de autopromoç­ão com o verniz de contestaçã­o é incendiári­a para inflamar as redes sociais. Penso até num cargo eletivo para 2022.

Os negacionis­tas da pandemia, do racismo, da desigualda­de, do aqueciment­o global já tomaram os seus lugares e conseguira­m propagande­ar a si mesmos. Mas o nicho da crase ainda está aberto. Baita oportunida­de para me promover a base do uso polêmico da crase.

Isso explica por que virei negacionis­ta. Aliás esse “por que” se escreve junto ou separado? A doutrinaçã­o do “porque” foi criada por professore­s marxistas para constrange­r alunos a buscar o verdadeiro “porque” das verdades ocultas. Em suma: “por que” separado não existe.

E, claro, a corrupção no Brasil não existe mais.

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Débora Gonzales

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