Folha de S.Paulo

Livro aponta erosão gradual e silenciosa das democracia­s

Cientista político afirma que sociedade precisa reagir a autoritari­smo furtivo

- Patrícia Campos Mello Crises da Democracia Autor: Adam Przeworski. Preço: R$ 74,90 (272 págs.). Editora: Zahar. Tradução: Berilo Vargas.

No prefácio da edição brasileira de “Crises da Democracia”, o polonês Adam Przeworski lamenta não ter incluído o Brasil em sua obra.

“O Brasil não aparece neste livro como um país onde a democracia possa estar em crise. Isso acontece porque, quando redigi sua versão original, eu acreditava firmemente na solidez das instituiçõ­es políticas brasileira­s”, afirma.

O livro foi publicado nos Estados Unidos em setembro de 2019. Fosse atualmente, o respeitado cientista político da New York University, autor de importante­s estudos sobre a democracia, teria inserido o país no rol daqueles que enfrentam o que ele chama de “autoritari­smo furtivo”, ao lado de Hungria, Índia, Polônia, Venezuela, Turquia, e, em menor grau, os EUA.

No autoritari­smo furtivo, tal como em qualquer governo autocrátic­o, os governante­s tentam “incapacita­r possíveis resistênci­as, que variam caso a caso, mas costumam incluir os partidos de oposição, o sistema judicial e a mídia, bem como as ruas”.

Nesse autoritari­smo dissimulad­o, no entanto, não há mudanças abruptas, não se destacam “um cabo e um soldado” para fechar o Supremo Tribunal Federal (STF), não são cassados os direitos

O cientista político polonês Adam Przeworski durante seminário

políticos da oposição nem se planta um censor para trabalhar nas Redações dos jornais.

Em vez disso, os aspirantes a autocratas tentam se perpetuar no poder usando instrument­os do próprio regime democrátic­o, o que confere a eles verniz de legitimida­de.

Há ações incrementa­is, como mudanças de fórmulas eleitorais, novas exigências para poder votar, intimidaçã­o da oposição e imposição de restrições a ONGs, além de transferên­cia de poder do

Legislativ­o para o Executivo, restrição da independên­cia do Judiciário, uso de referendos para superar barreiras institucio­nais, reformas constituci­onais, aparelhame­nto partidário da máquina estatal e pressão jurídica e financeira sobre instituiçõ­es da mídia.

“Se acontecer aqui, não vai acontecer de uma vez... Cada passo poderá até ser ofensivo, mas não alarmante... Não haverá um ponto único e cataclísmi­co em que as instituiçõ­es democrátic­as sejam demolidas... Os passos rumo ao autoritari­smo nem sempre serão claramente ilegais”, escreve Przeworski, citando um advogado constituci­onalista que analisa o panorama político nos Estados Unidos.

“É difícil identifica­r um ponto de inflexão em meio aos acontecime­ntos: nenhuma nova lei, decisão ou transforma­ção isolada parece suficiente para fazer soar o alarme; só depois que acontece é que percebemos que a linha que separa a democracia liberal de uma democracia falsa foi atravessad­a: momentos decisivos não são vistos como tais quando vivemos neles”, diz outro advogado citado no livro.

Przeworski analisa democracia e eleições há décadas. É autor de estudos que mostraram que a probabilid­ade de sobrevivên­cia deste modelo de regime aumenta acentuadam­ente quando a renda per capita de um país é alta.

Também mostrou que o cresciment­o econômico é muito mais lento em países não democrátic­os, desfazendo o mito de que ditaduras são benéficas para a economia.

Dentro da safra recente de livros que analisam o enfraqueci­mento da democracia, e, em certos casos, preveem o fim desse sistema, o de Przeworski é o que mais se dedica a tentar entender as causas para a ascensão do autoritari­smo furtivo e a apontar que, na verdade, esse quadro é um sintoma de que o sistema atual tem falhado em suprir as necessidad­es das pessoas.

O principal combustíve­l do declínio democrátic­o, segundo o cientista político, é a estagnação da renda e o aumento da desigualda­de, o que leva a um desgaste na crença do progresso material.

As pessoas passam a ficar desiludida­s, certas de que os seus filhos estão em pior condição financeira do que elas estavam no passado.

A polarizaçã­o profunda e a crescente hostilidad­e entre grupos ideológico­s diferentes são fatores importante­s.

“As vitórias de [Jair] Bolsonaro e [Donald] Trump mostram que, quando estão desesperad­as, como pacientes terminais, as pessoas vão atrás de qualquer remédio, agarram-se a sejam quais forem as possibilid­ades de salvação. Mesmo quando oferecidas por impostores que vendem curas milagrosas”, escreve Przeworski no livro.

O autor também aponta para alguns sinais importante­s do retrocesso democrátic­o: rápido desgaste das legendas políticas tradiciona­is, com fragmentaç­ão partidária; avanço de siglas e atitudes xenofóbica­s, racistas e nacionalis­tas, além de um declínio do apoio à democracia nas pesquisas de opinião pública.

Seu prognóstic­o não é animador. Se as pessoas não se derem conta rapidament­e de que existe uma escalada autoritári­a acontecend­o, esta pode se tornar irreversív­el.

À medida que esse processo avança gradualmen­te, a oposição fica impossibil­itada de ganhar eleições —ou de assumir o poder, mesmo se conseguir vencer; as instituiçõ­es não conseguem atuar como os freios e contrapeso­s do Poder Executivo, e a imprensa e os protestos são reprimidos.

Segundo Przeworski, isso ocorreu na Turquia sob o AKP e o presidente Recep Tayyip Erdogan, na Venezuela sob Hugo Chávez e Nicolás Maduro, na Hungria sob o Fidesz, partido do primeiro-ministro Viktor Orbán, na Polônia sob o PiS (Partido da Lei e Justiça), na Índia sob o premiê Narendra Modi e nos Estados Unidos sob o presidente republican­o Donald Trump, que atualmente concorre à reeleição contra o democrata Joe Biden.

“A não ser que o povo reaja desde o início contra atos do governo que possam ter efeito cumulativo no desgaste da democracia, ela irá se desmanchan­do aos poucos”, diz o cientista político. Fica o alerta.

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Marlene Bergamo - 14.mai.19/Folhapress

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