Refugiadas da Somália se tornam pioneiras no esporte britânico
Ramla Ali e Jahawir Roble fugiram da guerra no país natal e quebraram barreiras no boxe e no futebol da Inglaterra
Ramla Ali não sabe dizer quantos anos tem. Depois que o irmão morreu, atingido por uma granada, a família deixou tudo para trás na Somália —inclusive a certidão de nascimento dela— e fugiu da guerra civil em um barco superlotado.
Jahawir Roble perdeu um tio, morto a tiros durante o conflito no país. Para sobreviver, deixou às pressas a casa onde morava. O destino de ambas foi o Reino Unido, onde vivem entre os milhares de refugiados que ganharam uma nova chance. No caso delas, o esporte também foi a salvação para hoje inspirarem uma geração de meninas.
Jahawir, 26, nasceu em Mogadíscio, capital da Somália. Apaixonada pelo esporte desde criança, é fã de Ronaldinho Gaúcho e de Kaká. “Eles fazem o futebol parecer tão bonito”, diz em entrevista à Folha. Como não havia times femininos, ela jogava com os meninos —quando eles deixavam.
“Eu tinha seis, sete anos, os meninos diziam para eu sair de perto. Eu sentava à beira do campo e ficava olhando”, relembra. “Jogávamos futebol na rua até nossos pais mandarem a gente voltar para casa.”
O triste pano de fundo era a guerra civil no país, na qual Jahawir perdeu parentes e conhecidos. Um tio foi morto por “estar na hora errada no lugar errado”. A família nunca descobriu o autor do crime. Em uma manhã, em 2004, quando tinha dez anos de idade, o pai avisou que eles iriam embora no mesmo dia.
A menina perguntou se antes poderia se despedir dos amigos. “Ele disse que não, que podiam nos matar ali.”
Jahawir, os pais e os oito irmãos chegaram a Londres como refugiados, sem falar inglês. Logo de cara, ela pediu à mãe uma bola de futebol. “Na escola, a criança que tem uma bola é a que faz mais amigos. Aprendi rápido esse truque”, conta, sobre a estratégia certeira. “Minha confiança estava baixa, mas, quando eu jogava futebol, me tornava uma líder.”
O amor pelo futebol aumentou. Morava perto do estádio de Wembley e, em dias de jogos, ouvia o barulho da torcida. Aos 14 anos, foi chamada para fazer testes em uma equipe de Londres, mas os pais eram contra e a proibiram de jogar. Para seguir no esporte, virou voluntária em um clube local. Foi chamada de última hora para substituir um árbitro em uma partida infantil e viu que dali poderia surgir uma carreira.
Conseguiu ajuda financeira, fez cursos e se tornou a primeira árbitra muçulmana da Inglaterra. Mas ainda encontra barreiras. “Sinto que preciso me provar, trabalhar duas vezes mais que um árbitro homem. Às vezes ouço alguém dizer que mulher não pode ser árbitra. Quero deixar meu trabalho falar por mim”, afirma.
Se Jahawir se recorda com detalhes da chegada à Inglaterra, Ramla não se lembra de nada, pois era bebê. Sabe da fuga, depois da morte do irmão, pelos relatos da mãe. No início dos anos 1990, os pais partiram com os seis filhos em um barco com capacidade para 200 pessoas, em que havia 500. Muitos choravam em uma viagem perigosa da Somália até o Quênia.
O destino final foi Londres. Na adolescência, Ramla sofreu bullying na escola por estar acima do peso e sentia vergonha de suas origens.
“Sinto que preciso trabalhar duas vezes mais que um árbitro homem. Às vezes ouço que mulher não pode apitar. Quero deixar meu trabalho falar por mim
Jahawir Roble Árbitra muçulmana formada pela federação inglesa de futebol
“Adoraria ir para [os Jogos de] Tóquio se e quando a hora chegar. O sonho olímpico ainda existe, mas estou empolgada para iniciar entre os profissionais
Ramla Ali Boxeadora, criou a federação nacional de boxe da Somália
Atéqueentrounumaacademia e descobriu o boxe, mas com um problema: a rígida família muçulmana não podia saber.
Durante anos, ela escondeu que lutava e inventou desculpas para os machucados e olhos roxos. Foi em frente, se tornou número um do país na categoria até 54 kg e a primeira muçulmana a ganhar um título de boxe pela Inglaterra.
Em 2017, começou a representar a Somália e a sonhar com algo maior: disputar uma Olimpíada sob a bandeira do país natal. A nação africana havia levado dois atletas para a Rio-2016 e não tinha uma federação nacional de boxe.
Ramla e o marido, que também é seu técnico, criaram uma. Por causa da pandemia e do adiamento dos Jogos de Tóquio de 2020 para 2021, eles ajustaram os planos. Mês passado, ela se tornou profissional, o que significa mudar treinos e competições.
“Adoraria ir para Tóquio se e quando a hora chegar”, diz. “O sonho olímpico ainda existe, mas estou empolgada para iniciar entre os profissionais.”
Segundo a Acnur (agência da ONU para refugiados), pouco mais de 58 mil imigrantes e refugiados entraram na Europa via mar Mediterrâneo em 2020. Bem menos que os mais de um milhão de 2015, mas o tema ainda é grave e divide líderes de países europeus.
O Reino Unido não é tão procurado quanto nações como Itália, Grécia, Espanha ou Alemanha, mas alguns números chamam a atenção do governo britânico: em 2020, mais de 7.000 imigrantes chegaram ao país de barco pelo Canal da Mancha, mais que o triplo de todo o ano passado.
Nem todos terão as mesmas chances de Ramla e Jahawir. Nos últimos anos, a primeira
despertou interesse de marcas e assinou contrato com uma agência de modelos. É estrela de uma propaganda da Pantene na TV e apareceu na capa da revista Vogue britânica.
A edição de setembro de 2019, cuja editora convidada foi a duquesa de Sussex, Meghan Markle, homenageou mulheres pioneiras pelo mundo. Ramla apareceu ao lado da ativista Greta Thunberg e da primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern.
Ativa nas redes sociais, incentiva mulheres a praticarem esportes e mostra orgulho das origens. Em uma postagem recente, escreveu que sempre invejou quem comemora aniversário, enquanto ela nunca soube o dia em que nasceu. Passou a celebrar em 16 de setembro, a data que consta no passaporte (sua idade é estimada de 28 a 31 anos).
Jahawir foi convidada para fazer parte de uma campanha da Uefa de inclusão feminina no futebol. Árbitra de ligas de Londres e regiões vizinhas, quer continuar os estudos para chegar à primeira divisão do Campeonato Inglês.
Atualmente, existem 2.146 árbitras em todos os níveis do futebol na Inglaterra —72% a mais do que em 2016, mas o número de homens ainda é 12 vezes maior.
“Fico feliz de representar as mulheres, a minha cultura, a minha religião. E, sim, precisamos de mais árbitras”, afirma.
A frustração de não ter virado jogadora profissional ficou para trás. Hoje, ela acredita que ocupa um lugar privilegiado. “Os árbitros estão em campo, sentem as emoções, ouvem os atletas. É muito empolgante, melhor que assistir da arquibancada. Eu tenho o melhor assento do estádio.”