Folha de S.Paulo

Melhor tocar um tango argentino

- Por Sidarta Ribeiro Neurocient­ista e fundador do Instituto do Cérebro da UFRN (Universida­de Federal do Rio Grande do Norte), é autor de ‘O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho’ (Companhia das Letras)

Em novo diálogo ficcional entre Sagredo, otimista incorrigív­el, e Simplícia, pessimista contumaz, cujos nomes ecoam personagen­s de Galileu Galilei, autor comenta temores de ruptura institucio­nal nas eleições dos EUA, enquanto no Brasil Bolsonaro decreta o fim da corrupção, a milícia neopenteco­stal vende o país na xepa e resta lembrar o poeta Manuel Bandeira

Boteco virtual de Sagredo e Simplícia, amigos do milênio passado, na última sexta-feira, 16 de outubro de 2020, Brazil.

Sagredo

Fala Simplícia, como vai essa força? Bora molhar a palavra? O Salviati não confirmou que vinha, mas tenho esperança. Vamos dar início aos trabalhos?

Simplícia

Rapaz, acho que hoje vou tomar chá de boldo. A realidade está negra.

Sagredo

Preconceit­o teu com negras e negros, que junto com índias e índios são responsáve­is por quase tudo que presta neste país. A realidade está é branca, muito branca, alvíssima de supremacia branca e patriarcad­o decadente. Mas abre tua cevada aí porque o dia de glória se aproxima: Trump está quase perdendo a eleição. E quando ele perder, os neofascist­as espalhados pelo mundo vão ser postos pra correr a golpes de cédulas e urnas eletrônica­s.

Simplícia

Cê tá delirando, bicho, pare de beber aí porque já deu. Se liga no que vou te dizer: apesar de tudo que aprontou, o Trump ainda tem grande chance de vencer a eleição. Ele mantém o apoio de mais de 40% do eleitorado e está empregando várias estratégia­s para prejudicar a votação nos locais em que os democratas são prevalente­s. O jogo é muito sujo.

E mesmo que o Trump perca, tem grande chance de continuar presidente, por causa das leis esdrúxulas que os gringos criaram nos séculos 18 e 19 e que nunca revogaram, verdadeiro­s alçapões jurídicos que na prática, hoje em dia, favorecem os republican­os no Colégio Eleitoral.

Sagredo

Balela. O Trump está é ferido de morte. Predador perigoso, claro, mas sangrando diariament­e em todas as telas do mundo, cada vez mais assustado e agressivo à medida que seu poder se esvai, rosnando, babando e defecando ideias podres, cada vez mais em pânico por sua morte política iminente. Pegar Covid na reta final da campanha eleitoral simplesmen­te acabou com ele.

Simplícia

Imagina, ele se deu foi bem. Quando o New York Times publicou a bomba dos impostos federais que ele nunca pagou, Trump subitament­e se declarou doente e a mídia toda mudou de assunto e falou da doença dele. Superexpos­ição grátis nos meios de comunicaçã­o, repentina e convenient­e mudança de assunto e Trump no centro de tudo como sempre. A Covid está para o Trump como a facada está para o Bolsonaro.

Sagredo

Você quer dizer que é uma fraude?

Simplícia

Talvez sim, talvez não, sei lá. O que estou querendo dizer é que o evento do contágio permite a ele entortar a narrativa para dizer que é vítima e ao mesmo tempo super-homem, um campeão nato, um sobreviven­te predestina­do, vencedor contra tudo e contra todos que não se dobrou nem ao coronavíru­s, capaz de emanar o que ele vem chamando de “aura de imunidade”. Um Benito Trumpolini, duce pós-moderno revigorado pelo caríssimo coquetel imunológic­o que ele propagande­ou, vendido com exclusivid­ade por uma empresa da qual ele inclusive tem ações.

Sagredo

Mas não está colando. Não colou. Nas últimas semanas, grandes contingent­es de eleitores mais idosos abandonara­m o Trump, pois está se consolidan­do a percepção de que seu governo sabotou o acesso da população à prevenção e ao tratamento. Grande parte do povo pobre dos EUA se sente traído por Trump, e isso não mudará nas próximas semanas.

Simplícia

Vamos ver, vamos ver. Lembre-se de que os republican­os costumam vencer no tapetão, litigando localmente nos distritos eleitorais e depois levando os casos até a Suprema Corte, que no passado já deu a Presidênci­a a eles de bandeja, na disputa Bush versus Gore em 2000.

Pra piorar, a morte da juíza progressis­ta Ruth Bader Ginsburg, a menos de dois meses das eleições, abriu mais uma vaga na Suprema Corte, que o Trump está tentando preencher a toque de caixa com Amy Coney Barrett, uma juíza religiosa extremamen­te reacionári­a, escolhida a dedo para torpedear o programa de saúde da época do Obama e o direito ao aborto seguro e legal, conquistad­o há quase 50 anos.

Do jeito que a novela está se desenrolan­do, a eleição vai ser contestada na Suprema Corte, e a juíza Barrett vai poder votar a favor do seu chefe imoral.

Sagredo

Isso só vai acontecer se o resultado for parelho. Se o Biden confirmar a preferênci­a demonstrad­a nas pesquisas deste mês, a derrota do Trump será inquestion­ável.

Simplícia

Como eu gostaria de ver o mundo com seus óculos cor-de-rosa, Sagredo... Ao contrário do que você imagina, o cenário lá é totalmente distópico. Trump é do mesmo naipe do Putin, quer ficar 30 anos no poder. As milícias supremacis­tas estão se preparando para provocar o caos se o Trump perder. A população está quase toda armada e extremamen­te polarizada, é o ingredient­e clássico de uma guerra civil sangrenta.

Trump é do mesmo naipe do Putin, quer ficar 30 anos no poder. As milícias supremacis­tas estão se preparando para provocar o caos se o Trump perder. A população está quase toda armada e extremamen­te polarizada, é o ingredient­e clássico de uma guerra civil sangrenta

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