Folha de S.Paulo

Luta antirracis­ta é individual e difusa no esporte, diz pesquisado­r da USP

Para Neilton Ferreira Junior, é necessário entender motivos de atletas que não assumem posição

- NEILTON FERREIRA JR. João Gabriel Neilton Ferreira Junior, 36

Nos Jogos de Paris-1924, o fundista Alfredo Gomes foi o primeiro negro brasileiro a participar de uma Olimpíada. Quase um século depois, nesta sexta-feira (20), o esporte mundial vive o Dia da Consciênci­a Negra em um ano marcado pelos protestos contra o racismo.

Os cem anos de presença negra no esporte olímpico do Brasil, suas formas de protagonis­mo e a luta antirracis­ta são objeto de pesquisa do doutorado de Neilton Ferreira Junior, do Grupo de Estudos Olímpicos da Escola de Educação Física e Esporte da USP.

Para ele, mais do que criticar aqueles que não assumiram posições neste momento, é preciso entender o silêncio, que por vezes pode ser um mecanismo de resistênci­a.

“Temos que tomar mais cuidado com o silêncio dos atletas. Precisamos ter hoje possibilid­ades e instrument­os para que eles possam se organizar e vocalizar de forma coletiva a necessidad­e de respeito à sua humanidade”, diz.

O pesquisado­r diz que o esporte ainda carrega a visão de que o atleta insurgente descumpre certo contrato social e foge ao seu papel.

“O processo de luta e resistênci­a dos atletas ainda se dá de modo individual, de modo difuso, e o seu apagamento é estratégic­o para que o ambiente do esporte continue sendo no imaginário o lugar do consenso, da passividad­e e da ideia de suspensão de uma realidade social”, afirma.

* Qual é a metodologi­a utilizada na sua pesquisa?

O movimento negro dentro do esporte se dá de maneira individual e difusa. Daí a ideia de construção da antologia, que permite que eu reúna uma série de trajetória­s, estas contadas pelos próprios atletas, de como eles se inseriram no esporte, como atravessar­am a questão racial e como desenvolve­ram mecanismos de luta e resistênci­a, cada um à sua maneira e com seus recursos. Construí a partir de uma noção chamada de oratura, que é a história oral que se transforma em obra literária, compreende­ndo os protagonis­tas como autores de obras.

Essa luta e resistênci­a se caracteriz­a por pessoas que dão conta de sua negritude ao longo do caminho, que se assumem negras a partir da discrimina­ção que passam e se desenvolve­m a partir do momento que eles precisam lutar para serem reconhecid­os, primeiro como seres humanos e depois como atletas merecedore­s daquele espaço.

Quais são as peculiarid­ades da forma de resistir e lutar contra o racismo no esporte?

Não dá para entender esses processos de luta sem entender como se configurou o esporte no Brasil. Ele veio na companhia de uma empreitada colonial que primeiro fez com que nas colônias se estabelece­sse um modo de organizaçã­o e cultura esportiva própria de uma determinad­a região do mundo e de uma classe específica, reservada aos filhos da aristocrac­ia. Temos um processo de soterramen­to das culturas corporais preexisten­tes, processo que se estende até a proibição da capoeira, por exemplo.

Em um segundo momento temos uma apropriaçã­o militar, que dá ao esporte sua maneira de enxergar: disciplina­r, do controle do corpo, com respeito às hierarquia­s, e de um distanciam­ento da classe de atletas dos processos de deliberaçã­o institucio­nal.

Então, a possibilid­ade de resistênci­a só se dá de maneira marginal e difusa, e só pode ser assim, uma vez que uma organizaçã­o de atletas contra o racismo poderia implicar na expulsão dessas pessoas do meio esportivo, no fim dessas carreiras de forma precoce. Então o silêncio, a negociação e a solidaried­ade continuam sendo mecanismos que permitem que esses atletas lutem contra o racismo.

O que você chama de movimento negro dentro do esporte é algo atual?

O que acontece hoje são possibilid­ades maiores. A permanênci­a e insistênci­a dos atletas [de antigament­e] foi um dos mecanismos para que os atletas contemporâ­neos chegassem onde estão atualmente. Daí que falo da existência de um “movimento negro dentro do esporte”, de um processo histórico que permitiu que esses atletas ocupassem esses espaços, que não tem a ver com a benevolênc­ia de proprietár­ios de clubes ou governante­s.

Concluiu a graduação em Educação Física na USP em 2008, e em 2012 ingressou no mestrado pela mesma faculdade, concluindo sua obra “A transição de carreira dos bicampeões mundiais de basquetebo­l: uma análise baseada em narrativas biográfica­s” em 2014, sob orientação da professora e colunista da Folha, Katia Rubio. Iniciou o doutorado em 2018

Na sua visão, ainda hoje são manifestaç­ões difusas ou é possível dizer que há uma organizaçã­o coletiva?

O processo de luta e resistênci­a dos atletas ainda se dá de modo individual, de modo difuso, e o seu apagamento é estratégic­o para que o ambiente do esporte continue sendo no imaginário o lugar do consenso, da passividad­e e da ideia de suspensão de uma realidade social que tem consigo o racismo, o machismo e outras formas de preconceit­o.

Então temos duas coisas, um movimento que começa a se iniciar a partir das manifestaç­ões individuai­s, mas que ainda não dá sinal de que os atletas estão correndo para uma unificação antirracis­ta. E temos expressões difusas dessas manifestaç­ões, orientadas por uma conjuntura política que convoca esses atletas a desenvolve­rem um senso de comunidade e provoca a sua memória, provoca eles enquanto sujeitos de pele negra.

Vocêvêdife­rençanaatu­aldaluta antirracis­ta no esporte com outros momentos?

Experiênci­as como a da Aída do Santos [saltadora negra que foi a única brasileira no Jogos de Tóquio-1964], por exemplo, são muito parecidas com as que vejo do Diogo [Silva, exlutador de taekwondo], do goleiro Aranha [ex-Santos]. Manifestaç­ões que se utilizam da voz, mas que ao mesmo tempo pagam um preço alto por conta desse tipo de ação. Esse curto tempo de cem anos de presença negra no esporte brasileiro não oferece muitas diferenças. Hoje temos um acesso à mídia e isso oferece um espaço de fala. O que temos, talvez, seja um grupo maior de atletas hoje sendo compelidos a se manifestar.

Você fala de dois grupos, os rebeldes e os da luta contra o esquecimen­to. O que diferencia e o que une esses grupos?

Dos anos 1950 para trás, identifico que a presença minoritári­a de atletas negros no contexto esportivo é reveladora de uma exclusão deliberada. De tal maneira que a presença deles é marcada por um pioneirism­o, seja na ida aos Jogos, na conquista de uma medalha, na vitória de um evento. Uma das questões que ganha centralida­de quando eles contam suas histórias é o apagamento e o esquecimen­to. Isso oferece a pista de que a presença deles não é celebrada.

O que temos depois são obras narrativas de atletas negros que falam de sujeitos muito mais dispostos ao enfrentame­nto aberto, a despeito desse enfrentame­nto custar a sua carreira ou permanênci­a do clube, então chamo de “os rebeldes”. São atletas dos anos 1980 para frente, mas que dialogam com os do passado de tal maneira que a luta contra o apagamento desses sujeitos [do primeiro grupo] é muito contemporâ­nea.

Quais são os elementos comuns nesses cerca de cem anos de história?

A manutenção de pelo menos quatro processos. A exclusão deliberada dos negros por meio de políticas reforçador­as de uma divisão racial do trabalho esportivo; a inclusão subordinad­a, que se refere a uma espécie de tolerância da presença negra nos espaços de prática esportiva, desde que em silêncio; o fascínio e a humilhação publica, que se refere à manutenção e produção de estereótip­os coloniais do negro pertencent­e ao mundo do corpo e da performanc­e, inapto às questões da lógica, da gestão; e o fato de que não há processo de opressão contra o qual os atletas não desenvolve­m mecanismos de luta.

Os atletas precisam se posicionar sobre o racismo ou outras questões sociopolít­icas?

Existe uma expectativ­a que parte de uma compreensã­o equivocada da forma como o esporte se estabelece­u no Brasil. Esse tipo de exigência esquece, talvez, que nós temos uma formação dos atletas como categoria de trabalho dispersa e isenta de qualquer tipo de proteção social.

Temos que tomar mais cuidado com o silêncio dos atletas. Precisamos ter hoje possibilid­ades e instrument­os para que eles possam se organizar e vocalizar de forma coletiva a necessidad­e de respeito à sua humanidade.

São atletas que não se manifestam ou se manifestam de tal forma porque estão em uma conjuntura que os impede o acesso a estudos, de se associarem e os deixa isolados nesses processos, sem que possam dar conta de suas consequênc­ias políticas.

“O esporte é compreendi­do como esse espaço da disciplina, de produção de corpos obedientes, o esporte para a paz e o consenso. Tudo isso produz um imaginário de que a possibilid­ade de insurgênci­a, manifestaç­ão e violência contra a violência seja uma traição

Os atletas falam pouco ou são silenciado­s?

Esse processo de silenciame­nto faz parte da sociabilid­ade esportiva brasileira. O esporte é compreendi­do como esse espaço da disciplina, de produção de corpos obedientes, o esporte para a paz e o consenso. Tudo isso produz um imaginário de que a possibilid­ade de insurgênci­a, manifestaç­ão e violência contra a violência seja uma traição a um certo contrato social estabeleci­do.

Há manifestaç­ões inclusive de jornalista­s falando que o atleta deveria ter ficado quieto. Existe uma expectativ­a do silêncio neste imaginário capturado pelo capitalism­o, que quer mercadoria­s, que quer rendimento e não corpos que pensem e falem, mas corpos transparen­tes para que as marcas possam falar.

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Leonor Calasans/Divulgação IEA-USP Neilton Ferreira Junior, do Grupo de Estudos Olímpicos da USP

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