Luta antirracista é individual e difusa no esporte, diz pesquisador da USP
Para Neilton Ferreira Junior, é necessário entender motivos de atletas que não assumem posição
Nos Jogos de Paris-1924, o fundista Alfredo Gomes foi o primeiro negro brasileiro a participar de uma Olimpíada. Quase um século depois, nesta sexta-feira (20), o esporte mundial vive o Dia da Consciência Negra em um ano marcado pelos protestos contra o racismo.
Os cem anos de presença negra no esporte olímpico do Brasil, suas formas de protagonismo e a luta antirracista são objeto de pesquisa do doutorado de Neilton Ferreira Junior, do Grupo de Estudos Olímpicos da Escola de Educação Física e Esporte da USP.
Para ele, mais do que criticar aqueles que não assumiram posições neste momento, é preciso entender o silêncio, que por vezes pode ser um mecanismo de resistência.
“Temos que tomar mais cuidado com o silêncio dos atletas. Precisamos ter hoje possibilidades e instrumentos para que eles possam se organizar e vocalizar de forma coletiva a necessidade de respeito à sua humanidade”, diz.
O pesquisador diz que o esporte ainda carrega a visão de que o atleta insurgente descumpre certo contrato social e foge ao seu papel.
“O processo de luta e resistência dos atletas ainda se dá de modo individual, de modo difuso, e o seu apagamento é estratégico para que o ambiente do esporte continue sendo no imaginário o lugar do consenso, da passividade e da ideia de suspensão de uma realidade social”, afirma.
* Qual é a metodologia utilizada na sua pesquisa?
O movimento negro dentro do esporte se dá de maneira individual e difusa. Daí a ideia de construção da antologia, que permite que eu reúna uma série de trajetórias, estas contadas pelos próprios atletas, de como eles se inseriram no esporte, como atravessaram a questão racial e como desenvolveram mecanismos de luta e resistência, cada um à sua maneira e com seus recursos. Construí a partir de uma noção chamada de oratura, que é a história oral que se transforma em obra literária, compreendendo os protagonistas como autores de obras.
Essa luta e resistência se caracteriza por pessoas que dão conta de sua negritude ao longo do caminho, que se assumem negras a partir da discriminação que passam e se desenvolvem a partir do momento que eles precisam lutar para serem reconhecidos, primeiro como seres humanos e depois como atletas merecedores daquele espaço.
Quais são as peculiaridades da forma de resistir e lutar contra o racismo no esporte?
Não dá para entender esses processos de luta sem entender como se configurou o esporte no Brasil. Ele veio na companhia de uma empreitada colonial que primeiro fez com que nas colônias se estabelecesse um modo de organização e cultura esportiva própria de uma determinada região do mundo e de uma classe específica, reservada aos filhos da aristocracia. Temos um processo de soterramento das culturas corporais preexistentes, processo que se estende até a proibição da capoeira, por exemplo.
Em um segundo momento temos uma apropriação militar, que dá ao esporte sua maneira de enxergar: disciplinar, do controle do corpo, com respeito às hierarquias, e de um distanciamento da classe de atletas dos processos de deliberação institucional.
Então, a possibilidade de resistência só se dá de maneira marginal e difusa, e só pode ser assim, uma vez que uma organização de atletas contra o racismo poderia implicar na expulsão dessas pessoas do meio esportivo, no fim dessas carreiras de forma precoce. Então o silêncio, a negociação e a solidariedade continuam sendo mecanismos que permitem que esses atletas lutem contra o racismo.
O que você chama de movimento negro dentro do esporte é algo atual?
O que acontece hoje são possibilidades maiores. A permanência e insistência dos atletas [de antigamente] foi um dos mecanismos para que os atletas contemporâneos chegassem onde estão atualmente. Daí que falo da existência de um “movimento negro dentro do esporte”, de um processo histórico que permitiu que esses atletas ocupassem esses espaços, que não tem a ver com a benevolência de proprietários de clubes ou governantes.
Concluiu a graduação em Educação Física na USP em 2008, e em 2012 ingressou no mestrado pela mesma faculdade, concluindo sua obra “A transição de carreira dos bicampeões mundiais de basquetebol: uma análise baseada em narrativas biográficas” em 2014, sob orientação da professora e colunista da Folha, Katia Rubio. Iniciou o doutorado em 2018
Na sua visão, ainda hoje são manifestações difusas ou é possível dizer que há uma organização coletiva?
O processo de luta e resistência dos atletas ainda se dá de modo individual, de modo difuso, e o seu apagamento é estratégico para que o ambiente do esporte continue sendo no imaginário o lugar do consenso, da passividade e da ideia de suspensão de uma realidade social que tem consigo o racismo, o machismo e outras formas de preconceito.
Então temos duas coisas, um movimento que começa a se iniciar a partir das manifestações individuais, mas que ainda não dá sinal de que os atletas estão correndo para uma unificação antirracista. E temos expressões difusas dessas manifestações, orientadas por uma conjuntura política que convoca esses atletas a desenvolverem um senso de comunidade e provoca a sua memória, provoca eles enquanto sujeitos de pele negra.
Vocêvêdiferençanaatualdaluta antirracista no esporte com outros momentos?
Experiências como a da Aída do Santos [saltadora negra que foi a única brasileira no Jogos de Tóquio-1964], por exemplo, são muito parecidas com as que vejo do Diogo [Silva, exlutador de taekwondo], do goleiro Aranha [ex-Santos]. Manifestações que se utilizam da voz, mas que ao mesmo tempo pagam um preço alto por conta desse tipo de ação. Esse curto tempo de cem anos de presença negra no esporte brasileiro não oferece muitas diferenças. Hoje temos um acesso à mídia e isso oferece um espaço de fala. O que temos, talvez, seja um grupo maior de atletas hoje sendo compelidos a se manifestar.
Você fala de dois grupos, os rebeldes e os da luta contra o esquecimento. O que diferencia e o que une esses grupos?
Dos anos 1950 para trás, identifico que a presença minoritária de atletas negros no contexto esportivo é reveladora de uma exclusão deliberada. De tal maneira que a presença deles é marcada por um pioneirismo, seja na ida aos Jogos, na conquista de uma medalha, na vitória de um evento. Uma das questões que ganha centralidade quando eles contam suas histórias é o apagamento e o esquecimento. Isso oferece a pista de que a presença deles não é celebrada.
O que temos depois são obras narrativas de atletas negros que falam de sujeitos muito mais dispostos ao enfrentamento aberto, a despeito desse enfrentamento custar a sua carreira ou permanência do clube, então chamo de “os rebeldes”. São atletas dos anos 1980 para frente, mas que dialogam com os do passado de tal maneira que a luta contra o apagamento desses sujeitos [do primeiro grupo] é muito contemporânea.
Quais são os elementos comuns nesses cerca de cem anos de história?
A manutenção de pelo menos quatro processos. A exclusão deliberada dos negros por meio de políticas reforçadoras de uma divisão racial do trabalho esportivo; a inclusão subordinada, que se refere a uma espécie de tolerância da presença negra nos espaços de prática esportiva, desde que em silêncio; o fascínio e a humilhação publica, que se refere à manutenção e produção de estereótipos coloniais do negro pertencente ao mundo do corpo e da performance, inapto às questões da lógica, da gestão; e o fato de que não há processo de opressão contra o qual os atletas não desenvolvem mecanismos de luta.
Os atletas precisam se posicionar sobre o racismo ou outras questões sociopolíticas?
Existe uma expectativa que parte de uma compreensão equivocada da forma como o esporte se estabeleceu no Brasil. Esse tipo de exigência esquece, talvez, que nós temos uma formação dos atletas como categoria de trabalho dispersa e isenta de qualquer tipo de proteção social.
Temos que tomar mais cuidado com o silêncio dos atletas. Precisamos ter hoje possibilidades e instrumentos para que eles possam se organizar e vocalizar de forma coletiva a necessidade de respeito à sua humanidade.
São atletas que não se manifestam ou se manifestam de tal forma porque estão em uma conjuntura que os impede o acesso a estudos, de se associarem e os deixa isolados nesses processos, sem que possam dar conta de suas consequências políticas.
“O esporte é compreendido como esse espaço da disciplina, de produção de corpos obedientes, o esporte para a paz e o consenso. Tudo isso produz um imaginário de que a possibilidade de insurgência, manifestação e violência contra a violência seja uma traição
Os atletas falam pouco ou são silenciados?
Esse processo de silenciamento faz parte da sociabilidade esportiva brasileira. O esporte é compreendido como esse espaço da disciplina, de produção de corpos obedientes, o esporte para a paz e o consenso. Tudo isso produz um imaginário de que a possibilidade de insurgência, manifestação e violência contra a violência seja uma traição a um certo contrato social estabelecido.
Há manifestações inclusive de jornalistas falando que o atleta deveria ter ficado quieto. Existe uma expectativa do silêncio neste imaginário capturado pelo capitalismo, que quer mercadorias, que quer rendimento e não corpos que pensem e falem, mas corpos transparentes para que as marcas possam falar.