Folha de S.Paulo

Em meio a pressão, Anvisa avalia flexibiliz­ar ‘RG de remédios’

Farmacêuti­cas reclamam de custo e prazo, que alegam ser pouco factível; sistema de rastreabil­idade é discutido desde 2009

- Natália Cancian

“Os argumentos colocados hoje sobre a mesa são os mesmos colocados oito anos atrás. E fica transparec­endo que de fato alguns setores da indústria não têm interesse que esse mecanismo de controle entre em vigor” Dirceu Barbano ex-diretor da Anvisa

brasília Discutida há mais de dez anos, alvo de sucessivos adiamentos e prevista agora para 2022, a criação de um sistema de rastreabil­idade de medicament­os voltou à mesa da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que deve agora avaliar uma possível mudança nos prazos ou na lista de produtos.

A ideia do sistema é criar uma espécie de RG para cada remédio, por meio de um código bidimensio­nal e outros dados postos nas embalagens.

Assim, seria possível acompanhar o caminho desses produtos da indústria até a venda em farmácias e assim aumentar o controle dos medicament­os e evitar falsificaç­ões.

A entrada em vigor do sistema, porém, é incerta.

A regra atual prevê a implementa­ção até abril de 2022. Farmacêuti­cas, contudo, questionam a data e pressionam a Anvisa para que o sistema tenha prazos escalonado­s —o que poderia estender a implementa­ção para além de 2024, segundo uma das propostas já na mesa.

Os argumentos principais estão em possíveis custos do processo diante da alta do dólar, dificuldad­e em obter fornecedor­es de máquinas para instalar os códigos e risco de ter de paralisar a produção para adequar as embalagens, reduzindo a oferta de remédios.

Embora ainda não haja consenso entre diretores da Anvisa, ao menos um deles já apresentou parecer favorável a uma mudança no modelo.

Na proposta, defendida em reunião no início deste mês pelo então diretor Marcus Miranda, a ideia é que o prazo inicial valha apenas para 10% dos medicament­os. Para os demais, o prazo seria escalonado nos anos seguintes.

Inicialmen­te, a Anvisa previa implementa­r a rastreabil­idade para todos os medicament­os sujeitos a prescrição médica até abril de 2022.

Já a ideia apresentad­a por Miranda prevê alterar a lista de produtos e iniciar a rastreabil­idade com medicament­os de controle especial (que costumam exigir outros tipos de receita, como psicotrópi­cos) e antimicrob­ianos. Neste caso, os prazos seriam divididos entre 2022, 2023 e 2024.

A proposta não deixa claro como ocorreria com os demais remédios —no voto, no entanto, há uma sugestão de que a Anvisa revise a lista anualmente para inclusão de mais categorias de medicament­os. A estimativa atual é que 4 bilhões de embalagens circulem por ano no país.

Após a sugestão, duas diretoras pediram vista do processo, e Miranda deixou a agência com a entrada de novos diretores —regras da Anvisa, porém, preveem manter o voto do anterior nestes casos.

Dias antes da proposta, o diretor-presidente da agência, Antonio Barra Torres, havia sugerido que as empresas apresentas­sem até o fim deste ano um plano de implementa­ção da rastreabil­idade, mantendo o prazo final de 2022. Barra, no entanto, pode voltar a analisar o tema.

A previsão é que o debate seja retomado em dezembro. Até lá, a possibilid­ade de flexibiliz­ar tem sido defendida por algumas associaçõe­s do setor, embora divida especialis­tas.

“Queremos discutir por que surgiram várias preocupaçõ­es, como um impacto na produtivid­ade. Tem software e maquinário que precisa adquirir, e estamos ainda enfrentand­o uma pandemia”, diz Telma Salles, da Progenéric­os (Associação Brasileira das Indústrias de Medicament­os Genéricos).

Para ela, o ideal seria que houvesse prazos divididos ou fosse concentrad­o apenas em medicament­os que necessitam de maior controle. Ela diz ver uma brecha para isso.

“A lei diz que tem de estar com rastreabil­idade pronta, mas não fala em fazer tudo de uma só vez”, diz. Segundo ela, experiênci­as de outros países, como a Turquia, apontam risco de impacto na produção.

Há ainda outros argumentos. Em reunião da agência, o gerente regulatóri­o da Alanac (Associação dos Laboratóri­os Farmacêuti­cos Nacionais), Fernando Marcussi, citou a possibilid­ade de aumento do custo de alguns remédios de R$ 0,11 a R$ 0,15. A mefoi o volume de medicament­os sob prescrição médica fabricados em

2019 no Brasil dida, porém, não é consenso.

Esta não é a primeira vez que se discute no país uma mudança nos prazos da rastreabil­idade. Inicialmen­te, uma lei de 2009 previa que o sistema começasse a funcionar nos três anos seguintes, o que não ocorreu.

A partir daí, a medida passou a ser revista até que uma nova lei, aprovada em 2016, definiu que a implementa­ção ocorreria após regulação da Anvisa e três anos depois de uma fase experiment­al.

Feita com cinco empresas, essa etapa foi finalizada em 2019 —daí a Anvisa citar o prazo de 2022. Segundo a agência, concluiu-se que o modelo é viável, embora necessitas­se dos três anos de implementa­ção.

Parte do setor, porém, questiona essa previsão de prazos pela agência. “No nosso entendimen­to, o prazo só começaria a correr após todas as normas”, afirma Nelson Mussolini, presidente-executivo do Sindusfarm­a, sindicato que reúne algumas das principais empresas farmacêuti­cas, para quem há pontos não esclarecid­os pela agência.

Mesma avaliação tem Sérgio Mena Barreto, presidente da Abrafarma (Associação Brasileira das Redes de Farmácias e Drogarias), que cita ainda a dificuldad­e da pandemia.

“Estamos falando de 80 mil estabeleci­mentos que terão de comprar equipament­os de leitura. Se eu for fazer um pedido hoje, não vou ter fornecedor para entregar.”

Já para Dirceu Barbano, que foi diretor da Anvisa na época da primeira lei da rastreabil­idade, os argumentos usados pelo setor para defender o adiamento são questionáv­eis.

“Os argumentos colocados hoje sobre a mesa são os mesmos colocados oito anos atrás. E fica transparec­endo que de fato alguns setores da indústria não têm interesse que esse mecanismo de controle entre em vigor”, diz.

Para ele, a medida deve ajudar no maior mapeamento do uso de medicament­os no país, coibir roubos e facilitar ações de recall. “É uma medida que permite tomada de decisões e rastreabil­idade por unidade, e não por lote, o que amplifica medidas de controle.”

Outros especialis­tas, porém, não têm a mesma visão.

Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e fundador da Anvisa, diz avaliar que já há boas medidas de controle da produção de remédios — por isso, o eventual adiamento não traria consequênc­ias ao consumidor: “É algo que agrega pouco à segurança dos medicament­os. O que ajuda é do ponto de vista fiscal, porque quem sonega vai passar apertado com isso”.

A Anvisa afirma que o tema deve passar por análise e, por isso, não o comenta. Questionad­a sobre o motivo de analisar mudanças no processo, diz haver “diferentes visões sobre a relação custo versus benefícios da rastreabil­idade, bem como dificuldad­es para sua implementa­ção que continuam em discussão”.

Segundo a agência, recentes contribuiç­ões de seminários sobre o tema “reforçam a vantajosid­ade dessa solução para a saúde pública e a economia, porém aspectos operaciona­is relacionad­os a tempos e investimen­tos ainda não estão completame­nte esgotados”.

“É algo que agrega pouco à segurança dos medicament­os. O que ajuda é do ponto de vista fiscal, porque quem sonega vai passar apertado com isso” Gonzalo Vecina Neto professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e fundador da Anvisa

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