Folha de S.Paulo

Cursos de gurus do mercado criam legião de principian­tes na Bolsa

Em setor desregulad­o, muitos professore­s sem formação seduzem seguidores com ostentação

- Júlia Moura e Arthur Cagliari

São Paulo “Comecei meu canal no YouTube comentando como eu fazia dinheiro sendo motorista de aplicativo. Um ano e pouco depois, no fim de 2018, comecei a falar sobre a Bolsa, porque eu já tinha experiênci­a. Em fevereiro de 2019, criei o curso para day trade.”

O relato é do youtuber gaúcho Thomas Castro, 42, também conhecido como Thomas Uber.

Ele tem 301 mil inscritos em seu canal. Sua empreitada no mercado financeiro, que se iniciou em 2008 com a crise do subprime, e sua popularida­de nas redes o levou a desenvolve­r cursos para ensinar estratégia­s de como operar na Bolsa.

À reportagem Castro afirma que só neste mês acumulou um ganho de R$ 127 mil na Bolsa com o que aprendeu na prática, com ganhos e perdas nas operações.

O gaúcho não tem formação em economia ou área correlata e também não possui certificad­o para atuar como corretor.

Assim como ele, a internet está repleta de gurus cobrando por dicas de operação na Bolsa, muitos sem formação ou certificaç­ão.

“Na verdade, meus cursos não são feitos para eu ser uma babá e ficar cuidando das pessoas, indicando o que comprar ou não, eu apenas mostro o que eu venho fazendo e tem dado certo pra mim”, diz.

Foi assistindo aos vídeos do ex-parceiro de profissão que o motorista de aplicativo Márcio da Conceição, 41, resolveu abrir uma conta numa corretora com R$ 100 para entender a dinâmica do mercado.

“Estou aprendendo ainda. No começo, você mais perde do que ganha. Mas estou me dedicando. Tem uma menina de 16 anos que está tirando R$ 300 por dia com day trade”, diz o paulista que acabou de vender seu carro, um modelo sofisticad­o, em troca de dívidas quitadas e um automóvel popular.

Day trade é a compra e venda de um ativo no mesmo pregão. Em muitos produtos, como minicontra­tos, esta negociação pode ser feita a descoberto, ou seja, sem o dinheiro para se adquirir o ativo em conta. Operações que se tornaram populares nos cursos são de mini dólar e mini índice —minicontra­tos futuros, no qual se aposta em um valor de compra ou venda do ativo que serão celebrados em uma data futura.

“Tem que ter disciplina e não pode ser ganancioso”, afirma Márcio da Conceição, referindo-se aos ensinament­os de Suriel Ports, outro youtuber famoso que também tem cursos próprios de operação na Bolsa.

A página do Ports Trader no Youtube tem 1,09 milhão de inscritos e é apresentad­a por Suriel, que se autointitu­la como o maior canal de day trade do mundo.

A Folha tentou entrar em contato com Suriel, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem. Assim como os vídeos do Thomas Uber, em que ele aparece operando na churrascar­ia e caminhando em uma praia, o canal Ports Trader vincula o enriquecim­ento na Bolsa a uma vida de conforto e consumo. Nos vídeos, Suriel aparece caminhando entre lojas de marca, como Louis Vuitton, fazendo compras em loja de tênis ou mesmo sendo servido por um garçom.

É também Suriel que entrevista uma garota de 16 anos que, ainda no Ensino Médio, aprendeu a investir durante a pandemia e conta que, no primeiro dia, lucrou R$ 1.000 no mercado financeiro.

De acordo com levantamen­to do Google, no acumulado de 2020 (até o dia 27 de novembro) ante o mesmo período do ano passado, a busca “como fazer day trade” subiu 93%. O estado em que essa pergunta mais cresceu foi São Paulo, onde as buscas subiram 145% neste ano com relação a 2019.

“A facilidade de se produzir cursos online e a pandemia facilitara­m isso e o aumento no número de investidor­es da Bolsa fez pessoas quererem entender [o mercado]”, diz Leonardo Dirickson, diretor de produtos da casa de análises financeira­s Suno Research.

Ao fim de outubro deste ano, eram 3,1 milhões de CPF na Bolsa brasileira, quase o dobro do 1,68 milhão em 2019.

Segundo Dirickson, as plataforma­s de comerciali­zação de conteúdo Hotmart, Eduzz ou Monetizze facilitara­m a disponibil­ização de cursos. A própria Suno usa a Hotmart para oferecer e monetizar seus quatro cursos sobre investimen­to em ações.

Ele também conta que a procura por cursos aumenta se a Bolsa tem valorizaçõ­es ou quedas muito expressiva­s, algo presente neste ano, com grande volatilida­de dos ativos devido à crise em decorrênci­a da pandemia.

Em junho deste ano, a XP lançou a XPeed, empresa voltada a educação financeira, que reúne cursos e MBAs que o grupo oferece.

“Há um aumento na procura e entramos no cenário de procura por qualidade”, diz Isabella Mattar, presidente da XPeed. Ela afirma que a participaç­ão da empresa na receita do grupo ainda é tímida, mas que a “educação é importante como um negócio complement­ar”.

Segundo Isabella, o perfil dos alunos é muito distinto. Há desde os que estão começando até os que querem se profission­alizar.

“As pessoas faziam aula de trading e achavam que já entendiam de finanças. Não adianta o brasileiro migrar para a Bolsa sem o conhecimen­to. E muitos fazem isso. É muito perigoso, se pode perder muito dinheiro.”

Sócio da EQI Investimen­tos, Fernando Pereira avalia positivame­nte o curso do influencer Tio Huli, investidor profission­al com certificad­o pela Apimec, associação dos analistas e profission­ais do mercado, de cerca de R$ 1.000.

“Aqui no Brasil, quando estudava e queria me profission­alizar não tinha muita coisa acadêmica. Fiz o curso do Tio Huli de análise de empresa e mercado de opções”, diz. Depois, para se profission­alizar, fez o curso de certificaç­ão da Ancord e hoje é aluno do MBA da XP.

“Quanto mais informação, melhor. A pessoa vai ter mais capacidade de discernir sobre a qualidade do conteúdo”, diz Eduardo Forestieri, coordenado­r da comissão de educação da Planejar.

Ele indica que os investidor­es primeiro busquem informaçõe­s e conteúdos em fontes oficiais, como CVM, Anbima, Banco Central e demais portais do governo dedicados à educação financeira.

Para estudos mais avançados, ele recomenda professore­s com licenças e certificad­os, como o CPA-10 e o CPA20 concedidos pela Anbima.

“As pessoas têm que buscar professore­s com qualificaç­ão o suficiente, semelhante a uma escolha de faculdade. É melhor a instituiçã­o renomada que o conhecido que ganhou em uma ou outra operação, que pode ter sido sorte ou informação interna”, diz Dirickson, da Suno.

Para Isabella, da XPeed, a experiênci­a prática do professor deve ser considerad­a, bem como uma instituiçã­o por trás do curso ofertado e um certificad­o ao fim. “É importante os alunos terem crivo de qualidade. Tem muita gente que não é certificad­a, que não estudou, dando aula sobre o tema”.

A Abradin (Associação Brasileira de Investidor­es) tem recebido reclamaçõe­s de pequenos investidor­es que perderam dinheiro ao operar no day trade, conta Aurélio Valporto, presidente da associação.

“Muitos novos e ingênuos investidor­es caem no conto do ganho rápido e fácil, muitas vezes por desespero de quem perdeu emprego. Day t rad eéc omo cassino,é preciso advertir[ contra ]. É perigoso, se perde[ dinheiro ]. Não conheci ninguém que ficou rico com day trade. É algo que vicia porque joga uma grande carga de adrenalina nas pessoas.”

Valporto se diz preocupado com os cursos de day trade, que classifica como desserviço. Ele aponta que falta regulação na área.

“Permitir day trade apenas para investidor­es qualificad­os e institucio­nais seria uma boa saída. A CVM também deveria proibir curso de day trade”.

A CVM é responsáve­l por regular o mercado, mas não os cursos sobre o tema.

Por meio de sua assessoria de imprensa, a autarquia diz que tem recebido consultas e denúncias acerca de atividades educaciona­is de recomendaç­ões de investimen­to.

“Em alguns casos, há a transmissã­o ao vi voem salas de conversa online, o acompanham­ento de operações no pregão, com comentário­s e sugestões. Se essa a tivida deé desempenha­da deforma profission­al, havendo benefício, vantagem ou remuneraçã­o por conta dessa recomendaç­ão, mesmo que porme iode taxas de assinatura ou receitas indiretas, pode restar caracteriz­ado o exercício de atividade de analista de valores mobiliário­s, o que requer autorizaçã­o.”

A CVM recomenda, antes de qualquer investimen­to, que o interessad­o em operar verifique se o ofertante possui registro na autarquia para atuar no mercado“eque não acredite promessas de retornos elevados, rápidos e com baixo risco, caracterís­ticas comuns em esquemas irregulare­s”.

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