Folha de S.Paulo

Tirania está estável na Venezuela

Álvaro Uribe

- Ricardo Della Coletta

Ex-presidente da Colômbia diz que a ditadura na Venezuela se estabilizo­u diante do apoio que Nicolás Maduro mantém de Rússia e China, além da lealdade das Forças Armadas chavistas.

Ex-presidente colombiano, que passou dois meses em prisão domiciliar acusado de obstrução de Justiça, foi principal adversário de Hugo Chávez na América Latina

BRASÍLIA Ex-presidente da Colômbia, Álvaro Uribe afirmou à Folha que a ditadura na Venezuela se estabilizo­u diante do apoio que Nicolás Maduro mantém de Rússia e China, além da lealdade das Forças Armadas chavistas.

“A tirania na Venezuela está estabiliza­da, falo isso com tristeza”, disse o ex-líder colombiano, que durante o período que governou o país (2002-10) foi o principal adversário de Hugo Chávez na América Latina.

No domingo (6), a Venezuela realiza eleições parlamenta­res para compor a Assembleia Nacional, em um pleito marcado pelo boicote de parte da oposição ao regime. Para os contrários a Maduro, participar do processo é chancelar a legitimida­de da ditadura do país caribenho.

Político mais poderoso —e mais polarizado­r— da Colômbia, Uribe esteve mais de dois meses em prisão domiciliar devido a uma ação por obstrução de Justiça. Ele diz que as acusações têm motivação política. Na entrevista, concedida por videoconfe­rência de seu estado-natal, Antioquia, Uribe atacou o acordo de paz com as Farc (Forças Armadas Revolucion­árias da Colômbia), assinado por seu sucessor, Juan Manuel Santos. “O acordo não produziu paz, apenas mais violência”, disse.

O sr. foi um líder de direita em uma América do Sul com expoentes da esquerda como Chávez, Lula e Cristina Kirchner. Hoje temos Bolsonaro no Brasil e Iván Duque na Colômbia, mas também Alberto Fernández na Argentina e Luis Arce na Bolívia. Como vê o momento político atual da região?

Neste ano, a América Latina está perdendo dez anos de redução da pobreza, e isso gera muita incerteza e preocupaçã­o. Eu sigo pensando no que considero fundamenta­l para nossa região, e isso não mudou com a pandemia. Os países devem ter segurança e grande compromiss­o na promoção da iniciativa privada. Simultanea­mente é preciso criar políticas sociais.

Quando presidi a Colômbia, não é que o país tenha se convertido num paraíso, mas melhorou muito. Reduzimos a pobreza em 12 pontos percentuai­s, foi uma melhora substancia­l. Olhando para o período de pós-pandemia, o fundamenta­l é que nossos países pensem em promover muito a iniciativa privada com políticas sociais, que andam de mãos dadas.

O sr. fala em programas sociais, mas essas políticas sempre estiveram mais associadas à esquerda.

Nem eu sou de direita nem as políticas sociais são monopólio da esquerda. Inclusive a esquerda acaba com políticas sociais porque mata a fonte de renda [de um país], que é a iniciativa privada. [Hugo] Chávez acabou com a iniciativa privada e deixou a Venezuela sem renda para as políticas sociais. Acabaram com as empresas privadas, e a pobreza passou de 40% para 86% [da população].

Na Colômbia eu fui reeleito, e Juan Manuel Santos [seu exministro e hoje inimigo político] foi eleito com nossas bandeiras porque tínhamos um grande equilíbrio entre segurança com valores democrátic­os e políticas sociais. É um caso particular que não cabe em classifica­ções simplistas.

O tema que hoje une Brasil e Colômbia é a oposição ao regime de Maduro na Venezuela. A estratégia vai mudar com a saída de Donald Trump e a chegada de Joe Biden à Casa Branca?

Como presidente da Colômbia eu tive profundas diferenças com o regime de Chávez na Venezuela. É importante pensar no que ocorreu: Chávez falava de respeito à democracia e à empresa privada, de luta contra a corrupção e de redução dos níveis de pobreza. Foi eleito e eliminou liberdades democrátic­as, inclusive a liberdade de imprensa. Em seguida expropriou as empresas mais importante­s do país e anulou a criativida­de da iniciativa privada. [Os chavistas] se dedicaram a comprar a lealdade das Forças Armadas, enriquecen­do [os militares] com corrupção.

O que existe hoje? A tirania na Venezuela está estabiliza­da, digo isso com tristeza. Porque ela tem recursos da China e da Rússia, ainda mantém uma produção remanescen­te de petróleo, porque vende ouro, tem o narcotráfi­co colombiano e o apoio de grupos terrorista­s. Além do mais, porque [os chavistas] compraram com corrupção a lealdade das Forças Armadas.

Sobre os Estados Unidos, no início dos anos 1960 eles viveram uma ameaça no marco da Guerra Fria, a instalação de foguetes nucleares em Cuba. Acho que hoje existe outra grande ameaça, a instalação de grupos terrorista­s na Venezuela, todos inimigos dos EUA. Isso não muda com o presidente Biden. Pode ser que tenha um discurso menos forte, mas a ameaça de fundo segue existindo.

A estratégia de Trump de pressão total contra Maduro fracassou?

Quando minha geração era jovem, a cada 1º de janeiro, no aniversári­o da Revolução Cubana, nos diziam: “Neste ano a tirania em Cuba vai cair”. Nunca caiu, estabilizo­u-se e frustrou três gerações de cubanos. O mesmo está acontecend­o na Venezuela. Não vou criticar esforços, mas é certo que eles não foram suficiente­s.

Especulou-se no ano passado sobre uma possível intervençã­o armada na Venezuela, com o apoio de Brasil, Colômbia e EUA.

O governo do presidente [Iván] Duque nunca considerou essa opção. Tenho de deixar muito claro: o que já expressei é que as Forças Armadas da Venezuela deveriam ter retirado o apoio a Maduro. Deveriam ter apoiado o presidente [Juan] Guaidó [líder opositor] para que eleições livres fossem convocadas. Mas isso não ocorreu.

O sr. foi liberado recentemen­te de prisão domiciliar em um caso que ainda responde por obstrução de Justiça. Ao mesmo tempo, seu partido defende uma reforma do sistema judicial colombiano. O objetivo dessa reforma é beneficiá-lo?

Essa é uma interpreta­ção muito equivocada. O nosso partido propõe há muitos anos uma reforma da Justiça. Eu defendo isso desde 1991, quando foi promulgada a nova Constituiç­ão. Não tem nada a ver com o meu processo.

Mas vamos a ele: quem ordenou minha prisão domiciliar foi um magistrado [da Corte Suprema] que tinha vínculos financeiro­s com o governo Santos. E esse magistrado me impôs uma prisão domiciliar sem se declarar impedido, o que mostra perseguiçã­o política.

Meu telefone foi intercepta­do em 22 mil ocasiões, todas de forma ilegal. Violaram minhas conversas com meu advogado. E nas intercepta­ções não há uma palavra em que eu viole o Código Penal.

O pano de fundo do processo são acusações de que o sr. tem vínculos com grupos paramilita­res.

Houve muitos avanços na Colômbia no meu governo. Os homicídios caíram pela metade, houve forte redução de sequestros, os investimen­tos se multiplica­ram e a pobreza caiu. Esses são os resultados. Daí tentam me vincular com paramilita­res. Por favor, não há nenhum elemento. Os fatos são teimosos: quem desmontou os paramilita­res, levando-os à prisão e extraditan­do os seus líderes, foi o governo que eu presidi. Não me combatem na política, mas tentam atentar contra o meu prestígio.

O sr. é o maior opositor do acordo de paz com as Farc assinados há quatro anos. Por quê?

Quem ganhou o plebiscito [de 2016] foi o “não”. Mesmo assim os textos com as Farc foram impostos por meio de uma proposição de um Congresso subornado pelo governo [Santos]. O processo é ilegítimo.

Nós defendemos ao menos duas mudanças: primeiro, reformar a Jurisdição Especial para a Paz [instância criada pelo acordo para julgar guerrilhei­ros e agentes públicos que participar­am do conflito armado] para que ela não julgue militares colombiano­s, que os militares sejam julgados por uma entidade independen­te, não por um tribunal imposto pelas Farc.

Segundo, que as pessoas das Farc, responsáve­is por delitos atrozes e que estão no Congresso, saiam de lá.

A Jurisdição Especial é peça central do acordo de paz. Ao aboli-la, o sr. não teme devolver a Colômbia para um conflito armado que marcou o país por décadas?

Eu acabei de falar de reformar, não de abolir a Jurisdição Especial. Além do mais, esse acordo não produziu paz, apenas mais violência. Basta ver o que existe hoje na Colômbia para verificar que esse acordo não terminou nenhum conflito. É um acordo de impunidade absoluta. Nesse processo Santos teve o apoio de Cuba e Venezuela porque ele cedeu tudo às Farc. Os membros das Farc seguiram no narcotráfi­co depois da assinatura do acordo e não repararam as vítimas. Ou seja, os mesmos que aparenteme­nte estariam comprometi­dos com a paz são aqueles que descumprem totalmente o acordo, que não gerou paz.

O sr. coincidiu na Presidênci­a com Lula no Brasil. Como vê hoje a relação Brasil-Colômbia?

É um momento positivo, e a relação entre os presidente­s Duque e Bolsonaro é muito boa. Na minha época, eu e o presidente Lula tivemos diferenças em relação à Venezuela e a grupos terrorista­s na Colômbia. Entretanto, tivemos um bom diálogo em outros aspectos. Fizemos um acordo para avançar a integração econômica entre a Comunidade Andina e o Mercosul, e houve muito investimen­to privado brasileiro na Colômbia.

A tirania na Venezuela está estabiliza­da, digo isso com tristeza. Porque ela tem recursos da China e da Rússia, ainda mantém uma produção remanescen­te de petróleo, porque vende ouro, tem o narcotráfi­co colombiano e o apoio de grupos terrorista

Quem ganhou o plebiscito [sobre o acordo de paz com as Farc, de 2016] foi o “não”. Mesmo assim os textos com as Farc foram impostos por meio de uma proposição de um Congresso subornado pelo governo [de Juan Manuel Santos]. O processo é ilegítimo

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Antes de ser eleito presidente, foi prefeito de Medellín e governador de Antioquia. Seu governo foi marcado por ofensiva militar contra as Farc. Tornou-se senador em 2018, mas renunciou ao posto após sua prisão domiciliar por tentativa de manipulaçã­o de testemunha­s. É acusado por opositores de vínculos com grupos paramilita­res
Luisa Gonzalez - 8.out.19/Reuters Álvaro Uribe Vélez, 68 Antes de ser eleito presidente, foi prefeito de Medellín e governador de Antioquia. Seu governo foi marcado por ofensiva militar contra as Farc. Tornou-se senador em 2018, mas renunciou ao posto após sua prisão domiciliar por tentativa de manipulaçã­o de testemunha­s. É acusado por opositores de vínculos com grupos paramilita­res

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