Folha de S.Paulo

Frigorífic­o compra direto de fazenda ilegal, relata ONG

Investigaç­ão da Global Witness monitorou ações de JBS, Marfrig e Minerva

- Phillippe Watanabe

são paulo Uma investigaç­ão da ONG britânica Global Witness afirma que JBS, Marfrig e Minerva, os maiores frigorífic­os brasileiro­s e entre os principais do mundo, têm comprado gado ao menos nos últimos três anos de fazendas com desmatamen­to ilegal no Pará. A Folha teve acesso à investigaç­ão, que durou cerca de um ano.

Os frigorífic­os negaram irregulari­dades à Global Witness.

Junto à entidade brasileira Imazon, a ONG diz ter tido acesso a todas as guias de trânsito animal das empresas em questão de 2017 a 2019 no estado do Pará. Esse documento é necessário para que o gado seja transporta­do entre fazendas e delas para o abatedouro. Geralmente, os frigorífic­os verificam se há irregulari­dades ambientais ou sociais na fazenda da qual recebem diretament­e o gado.

Com as guias em mãos, foi possível verificar por quais fazendas o gado comprado pelos frigorífic­os passou. As entidades, então, cruzaram as informaçõe­s dos guias de transporte com o desmatamen­to ilegal registrado pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e com autorizaçõ­es de derrubada da mata —cada propriedad­e amazônica pode desmatar até 20% de sua área, se tiver aval para isso.

Após o cruzamento de dados, os investigad­ores verificara­m os desmatamen­tos ilegais ocorridos nas fazendas que fizeram parte da cadeia dos maiores frigorífic­os do país nos últimos anos.

A investigaç­ão aponta que a JBS comprou gado diretament­e de 327 fazendas nas quais ocorreu desmatamen­to ilegal no período considerad­o. A Marfrig comprou de 89 e a Minerva de 16.

Com base nesses dados, a ONG afirma ter detectado mais de 17 mil hectares de desmatamen­to em fazendas que fornecem diretament­e gado para essas empresas. Levando-se em conta os fornecedor­es indiretos, seriam mais de 116 mil hectares.

“Isso é apenas em um estado da Amazônia. Se esse tipo de investigaç­ão fosse replicada na Amazônia inteira e no cerrado, seria esperado que as empresas de carne bovina tivessem ligações com o desmatamen­to muito piores”, afirma Chris Moye, pesquisado­r-sênior da Amazônia da Global Witness.

Levando em conta fornecedor­es diretos e indiretos, a JBS responde pela maior parte do desmatamen­to detectado, segundo os dados analisados pelo Imazon e pela ONG.

“As empresas de carne bovina concordara­m em monitorar os fornecedor­es indiretos há quase uma década, mas só agora estão começando a fazer algo a respeito disso. Mesmo assim, estão atrasando o cumpriment­o total por mais quatro ou cinco anos”, diz Moye.

Um dos locais analisados pela investigaç­ão foi São Félix do Xingu, lar do maior rebanho bovino do país. Segundo os dados cruzados pelo Imazon, de 2017 a 2019 a JBS comprou gado de 109 fazendas no município nas quais ocorreu desmate ilegal.

Uma delas foi a fazenda El Shadai. A análise mostra que, nos anos considerad­os, a JBS adquiriu 1.526 bois da fazenda em questão. Enquanto isso, o Imazon detectou 44 hectares de desmate ilegal de 2015 a 2016 e, em 2017, o Ibama embargou a fazenda pelo desmate de 112 hectares.

A Marfrig tem pelo menos um exemplo de compra de gado provenient­e de área com desmate ilegal recente em São Félix do Xingu. Trata-se da fazenda MD, na qual houve desmatamen­to ilegal e embargo do Ibama. Mesmo após o embargo, a empresa voltou a comerciali­zar gado da fazenda em questão, diz o relatório.

O documento também cita possível contaminaç­ão da cadeia produtiva da Marfrig por gado criado na terra indígena Apyterewa, o que é ilegal. Os bois posteriorm­ente seriam levados para a fazenda Serra de Pedra, em uma espécie de lavagem de gado, que fornece para a Marfrig.

Já no caso da Minerva Foods, a relação com o desmatamen­to ilegal é exemplific­ada pelas compras diretas da fazenda São Vicente, onde foram registrado­s 170 hectares de desmatamen­to não autorizado. Além disso, essa fazenda foi abastecida de 2016 a 2019 por ao menos dez outras propriedad­es com 264 hectares de desmate —duas das fazendas com embargos do Ibama, segundo a investigaç­ão.

As principais empresas de gado brasileira­s têm compromiss­os de não comprar animais de fazendas envolvidas em crimes ambientais ou com trabalho escravo. No entanto, elas não conseguem garantir que isso é cumprido à risca, porque não mantêm rastreamen­to de toda a cadeia produtiva, do nascimento do bezerro até a vida adulta do animal. O rastreio se concentra, de forma geral, na última fazenda pela qual o gado passa antes de ir para o abate.

O Ministério Público Federal já afirmou que as empresas da área não têm como garantir que a carne que vendem não esteja “contaminad­a” com crimes.

Não é a primeira vez que as empresas em questão são relacionad­as a desmatamen­to ilegal na Amazônia. Uma investigaç­ão recente da ONG Greenpeace no Pará também encontrou ilegalidad­es ambientais na cadeia de produção da JBS e da Marfrig.

Com a apresentaç­ão dos dados de desmatamen­to ilegal, a investigaç­ão da Global Witness afirma que houve falhas nos processos de auditoria contratado­s —a ONG cita especifica­mente a empresa norueguesa DNV-GL e a americana Grant Thornton— para verificar o cumpriment­o dos compromiss­os das empresas.

Por fim, o relatório aponta também para a responsabi­lização de instituiçõ­es econômicas que financiam as empresas citadas. Algumas instituiçõ­es financeira­s já começaram a agir devido a preocupaçã­o da contaminaç­ão por desmatamen­to. Recentemen­te, a Nordea Asset Management excluiu ações do JBS de seus fundos, e analistas do banco HSBC alertaram seus investidor­es para a falta de solução da empresa para monitorar a cadeia.

A JBS, em resposta à Global Witness, afirmou que parte das compras de gado de fazendas com desmate ilegal ocorreu em momentos em que as propriedad­es estavam em vias de se adequar ao Código Florestal de 2012, afirmação que não parece encontrar respaldo nos regramento­s da área. Outra parte do desmatamen­to detectado pela ONG teria sido inferior a 6,25 hectares por fazenda, considerad­o passível de detecção pelo Inpe.

A JBS também afirma ter identifica­do, entre as fazendas apresentad­as pela Global Witness, diferenças entre o mapa que monitora e o que foi apresentad­o pela ONG. Em outros casos, a empresa diz não ter efetuado as compras registrada­s nas guias de trânsito. A empresa diz que as compras precederam os ilícitos ambientais ou embargos do Ibama.

O frigorífic­o, porém, confirmou à Folha que a fazenda El Shadai apontada pela investigaç­ão fazia parte de seus fornecedor­es, mas que não constava na lista de embargos do Ibama. A empresa aponta que o embargo só foi detectado após consulta pelo CPF do proprietár­io e que a fazenda não é mais usada por ela.

A Marfrig afirmou que cerca de metade das fazendas apontadas como irregulare­s tinha desmatamen­to anterior à data limite dos compromiss­os da empresa. Disse também que outras parcelas das fazendas tiveram desmatamen­tos após a compra ou áreas desmatadas inferiores a 6,25 hectares ou identifica­ções errôneas de desmatamen­to pelo Inpe. Por fim, em cinco casos a empresa disse não ter encontrado em seu sistema as fazendas apontadas pela Global Witness.

À Folha a empresa afirmou que “não foi identifica­do qualquer abate irregular, o que significa que eles estavam em conformida­de com os critérios sociais e ambientais adotados pela Marfrig nas datas dos abates”.

Questionad­a sobre a fazenda MD, a Marfrig afirma que “não abate animais de nenhuma fazenda com embargo pelo Ibama”. “Isso aplica-se também a fazenda MD, em São Félix do Xingu, a qual não consta mais na lista de fornecedor­es da empresa”.

Por fim, a Minerva afirmou que seis fazendas citadas tinham desmatamen­to anterior ao marco temporal previsto no Código Florestal, que quatro foram bloqueadas como fornecedor­as e que duas das fazendas tinham tido desmatamen­to erroneamen­te identifica­do pelo Inpe. Outra das fazendas teria desmate inferior a 6,25 hectares. Segundo a empresa, há ainda uma fazenda com limites territoria­is sobreposto­s, o que dificultar­ia o monitorame­nto. Nos dois casos restantes, a empresa diz não ter compras registrada­s.

À Folha a Minerva afirmou estar confiante “nos resultados de nossa ferramenta de monitorame­nto geográfico” e que “é pioneira em ações concretas para o monitorame­nto dos fornecedor­es indiretos”.

 ?? Christian Braga -30.nov.20/Greenpeace ?? Fazenda São José, em São Félix do Xingu, no Pará, fornecedor­a dos frigorífic­os JBS e Marfrig
Christian Braga -30.nov.20/Greenpeace Fazenda São José, em São Félix do Xingu, no Pará, fornecedor­a dos frigorífic­os JBS e Marfrig

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil