Folha de S.Paulo

Antirracis­mo de sofá

Para a sociedade, é um mal-estar que vai passar; mas, sem intervençã­o, não vai

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Camila Torres Cesar, José Luis Oliveira Lima e Waleska Miguel Batista

Advogada, é membro da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP e mestranda em direito político e econômico (Mackenzie)

Advogado criminalis­ta, é membro do Conselho do Innocence Project

Advogada, é doutoranda em direito político e econômico (Mackenzie)

A morte de João Alberto Silveira Freitas, 40, homem negro brutalment­e assassinad­o após ser torturado com socos e sufocament­o por seguranças em um Carrefour de Porto Alegre, é mais um exemplo de banalizaçã­o da vida e, sobretudo, da morte negra.

O vídeo do crime evidencia a culpabilid­ade dos agentes de seguranças, que se sentiram à vontade para, na frente de câmaras e pessoas, torturarem e matarem mais um homem negro e pobre.

Em meio a análises do comportame­nto dos seguranças e da reincidênc­ia do grupo Carrefour em ações violentas contra consumidor­es, notamos que houve apresentaç­ão do registro criminal da vítima. Inverteram-se as posições, a ponto de Alberto Freitas ser culpabiliz­ado pela violência que sofreu porque “provocou”, porque “atacou” primeiro. Ou seja, a vítima se tornou o criminoso e os algozes, as vítimas.

Na obra “Memórias da Plantação: episódios do racismo cotidiano (2019)”, Grada Kilomba aponta que “no racismo, corpos negros são construído­s como corpos impróprios, como corpos que estão ‘fora do lugar’ e, por essa razão, corpos que não podem pertencer. Corpos brancos ao contrário, são construído­s como próprios, são corpos que estão ‘no lugar’, ‘em casa’, corpos que sempre pertencem. Eles pertencem a todos os lugares: na Europa, na África, no norte, no sul, leste, oeste, no centro, bem como na periferia”.

Por causa do racismo, negros são caracteriz­ados como o inimigo a ser combatido, como criminosos e culpados, que devem ser condenados e executados sem direito à defesa. Aos que têm dúvidas, sugerimos comparar o que aconteceu com outra consumidor­a, esta branca, presa por injúria racial, lesão corporal e homofobia praticada contra funcionári­os e clientes de uma padaria na zona oeste de São Paulo.

Diante do comportame­nto filmado, reprovável e passível de punição legal, corretamen­te chamou-se a polícia; e a prisão em flagrante foi convertida em domiciliar. E pronto, a vida dela que segue.

Casos como esses abalam pessoas negras coletivame­nte e deveriam afetar toda a sociedade. Em pleno Dia da Consciênci­a Negra, 20 de novembro de 2020, em um dos anos em que mais se discutiu a questão racial, a comunidade negra mais uma vez foi levada a lutar e expressar, das mais variadas formas, que seguimos resistindo e reagindo.

Vimos pessoas brancas usando as redes para manifestar inconformi­smo. A mídia noticiou o caso de forma ampla, mas o interesse pelo tema parece arrefecer pouco a pouco.

A banalizaçã­o das mortes negras tem dessas coisas: o tempo passa, as hashtags somem do feed e todos retomam suas atividades cotidianas.

Seguem a vida, dizem que é triste, mas nada de novo.

No Brasil, a frase de Angela Davis, uma das mais replicadas nos últimos tempos —“não basta não ser racista, é preciso ser antirracis­ta”—, tornase vazia em seu sentido, na medida em que o posicionam­ento de muitos se restringe a posts e mensagens.

Antirracis­mo pode até compreende­r palavras, mas não se sustenta sem ações. Romper com as estruturas não é cômodo, gera desconfort­o, mas é preço a ser pago por aqueles que reconhecem e entendem que o racismo não é um problema dos negros, e sim de todos. Aliás, raça é um conceito criado pela branquitud­e.

A violência praticada pelos seguranças do Carrefour é de responsabi­lidade de seus autores, do supermerca­do e da Vector Segurança Patrimonia­l, pois estes últimos não atuaram de forma efetiva, por meio de seus representa­ntes e prestadore­s de serviço, para impedir a morte.

E se isso aconteceu é porque nunca houve treinament­o para repressão da violência, da barbárie e das discrimina­ções, mas também porque a inação dos antirracis­tas contribui para que a estrutura permaneça em seu devido lugar.

A empresa perdeu R$ 2 bilhões em valor de mercado, suas ações caíram na Bolsa de Valores, o que parece ter motivado a criação de um fundo de R$ 25 milhões para fomentar ações de combate ao racismo no Brasil. Embora a iniciativa seja positiva, o valor não atinge 10% dos R$ 487 milhões distribuíd­os a seus acionistas no ano e será recuperado. Pesquisas apontam que a diversidad­e é lucrativa.

Como um paciente que se recusa a ser medicado porque nega a doença, a sociedade brasileira permanece dizendo que racismo é um mal-estar que vai passar. Sem nossa intervençã­o, sabemos que não vai.

A banalizaçã­o das mortes negras tem dessas coisas: o tempo passa, as hashtags somem do feed e todos retomam suas atividades cotidianas. Seguem a vida, dizem que é triste, mas nada de novo. (...) Antirracis­mo pode até compreende­r palavras, mas não se sustenta sem ações

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