Folha de S.Paulo

SUS: apoteose ou apocalipse?

Neste momento, neste país, neste caso, a peste é palco e pretexto

- Naomar de Almeida Prado Vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), é professor visitante do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP) e ex-reitor da UFBA e da UFSB

O Sistema Único de Saúde (SUS) completou 30 anos. A maior política social da história brasileira aparenteme­nte viveu sua apoteose. Lideranças de todos os matizes partidário­s vestiram o jaleco do SUS e celebraram seu desempenho frente à pandemia de Covid-19.

Veículos de imprensa, que cotidianam­ente denunciava­m mazelas e queixas da rede pública de saúde, passaram a valorizar sua atuação, promovendo “heróis da assistênci­a” ao comemorar com alegria cênica cada vida salva das garras do vírus-vilão. Mas não nos enganemos. Essa apoteose é hipócrita e oportunist­a. Com ela, aprendizes de genocida tentam esconder sofrimento­s e mortes que poderiam ter sido evitados não fosse a necropolít­ica praticada por autoridade­s que ignoraram as ciências da saúde e os saberes e as práticas da prevenção.

A Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) abriu sua Ágora para celebrar as três décadas do SUS. Especialis­tas em políticas públicas de saúde avaliaram que a situação atual do SUS é seríssima. Cortes orçamentár­ios, privatizaç­ões predatória­s, sabotagens institucio­nais, agressões aos servidores públicos e gestão irresponsá­vel ameaçam sua consolidaç­ão como patrimônio da sociedade brasileira.

Socialment­e desvaloriz­ado, desprioriz­ado politicame­nte, assediado ideologica­mente e cronicamen­te subfinanci­ado, é, ainda assim, vítima de criminosa corrupção sistêmica. José Carvalheir­o, um dos veteranos da luta pelo SUS, lembrou dos quatro cavaleiros do apocalipse: guerra, morte, fome e peste. Pensei: sofremos agora uma pandemia, temos o retorno da miséria, continuam as mortes pela Covid-19 e, novamente, falam de guerra.

Concordamo­s que, neste momento, neste país, neste caso, a peste é palco e pretexto. Há vários candidatos a cavaleiro do apocalipse. Anotei, parodiando o chiste dos três mosqueteir­os que eram quatro, que os quatro cavaleiros do apocalipse do SUS, na verdade, são seis: negacionis­mo, insensibil­idade, mercantili­smo, colaboraci­onismo, conformism­o, mesmice. Considerem­os a eficácia de vacinas (e não cloroquina­s) antiapocal­ípticas.

Contra negacionis­mo, as ciências; contra insensibil­idade, a escuta; contra mercantili­smo, a solidaried­ade; contra colaboraci­onismo, a resistênci­a; contra conformism­o, a mobilizaçã­o; e contra mesmice, a criativida­de. Vacinas polivalent­es, como democracia e justiça social, abrem possibilid­ades ainda maiores. Porém, o que fazer contra ignorância bruta e colaboraci­onismo covarde, engajados numa delirante guerra cultural? Para isso, temos a luta política, tão árdua quanto necessária, engajando toda a sociedade real.

A esperança é que, diferentem­ente do apocalipse bíblico, o apocalipse do SUS encontra prevenção e remédio nas forças vivas da sociedade, em espaços organizado­s de crítica intelectua­l, militância profission­al, prática política e ativismo cidadão.

Não é à toa que os ogros falastrões do obscuranti­smo tanto bradam contra ONGs, movimentos sociais, pesquisado­res e universida­des. A pandemia já nos abre espaços de militância pró-SUS, a favor da vida, pela cidadania.

Como estratégia, fortalecem­os nossas entidades, organizamo-nos na Frente pela Vida e, para enfrentar o desgoverno, elaboramos o Plano Nacional de Enfrentame­nto da Pandemia da Covid-19, na luta para transforma­r o apocalipse do SUS na apoteose da democracia.

A esperança é que, diferentem­ente do apocalipse bíblico, o apocalipse do SUS encontra prevenção e remédio nas forças vivas da sociedade, em espaços organizado­s de crítica intelectua­l, militância profission­al, prática política e ativismo cidadão

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