Folha de S.Paulo

O Supremo e a tentação da política

A Constituiç­ão não deve ser ajustada ao sabor de eventuais maiorias

- Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo

A Constituiç­ão é clara ao fixar os mandatos das Mesas do Congresso em dois anos e estabelece­r que é “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatame­nte subsequent­e”. É sempre possível à criativida­de humana desafiar o sentido das palavras. E um risco quando se trata do direito e da Constituiç­ão, onde levar a sério as palavras significa levar direitos a sério.

É o tema neste episódio da sucessão de Maia e Alcolumbre no Congresso. Para além de juízos de maioria ou minoria, a Constituiç­ão consagrou o valor da alternânci­a de poder. O reconhecim­ento de que não faz bem ao país a tentação do uso da máquina do próprio Parlamento para a preservaçã­o do poder.

Neste episódio, porém, há algo mais em jogo: a própria ideia de que o que está escrito na Constituiç­ão não é uma banalidade passível de interpreta­ção a gosto de uma eventual maioria na Câmara ou no Senado.

A tese simples e essencial de que não é a “autonomia dos Poderes” que disciplina o uso da Constituiç­ão, mas a Constituiç­ão que disciplina o funcioname­nto dos Poderes. Tese que põe por terra o argumento sem nexo, que se escuta por aí, segundo o qual fixar as próprias regras de sucessão é um problema interna corporis do Congresso.

Não é. A regra já foi dada pela Constituiç­ão. A Carta que deve funcionar, como diz meu conterrâne­o Lênio Streck, como um “remédio contra as maiorias” e a “voz das ruas”. Neste caso, diria, a voz dos corredores do Congresso. Leio coisas ainda mais estranhas, como a ideia de que ministros do Supremo avaliem como positivo o atual “arranjo político” e a contenção do Executivo feita por Maia e Alcolumbre. E que seria uma boa ideia manter os atuais presidente­s.

Não faz sentido que integrante­s da Suprema Corte façam este tipo de juízo quando se trata de garantir o que está escrito na Constituiç­ão.

É certo que o avanço dos tribunais sobre o Parlamento já vai longe. Em dezembro de 2019, o Supremo promoveu um debate com líderes partidário­s sobre a possibilid­ade das candidatur­as independen­tes. O tema continua na pauta do STF. À época, o ministro Barroso dizia que era preciso entender “se o Supremo tem caminhos para decidir sobre o assunto”, ou se isso caberia ao Parlamento.

O dado singelo é que a Constituiç­ão diz que a filiação partidária é “condição de elegibilid­ade” e, ao menos até onde se saiba, cabe ao Congresso (e em alguns casos nem mesmo ao Congresso) mudar a Constituiç­ão.

Caso notório foi o tratamento que o Supremo deu a dois elementos centrais do pacote anticrime aprovado em 2019 pelo Congresso. O primeiro foi o devido ajuste feito na exigência de revisão de prisões preventiva­s a cada 90 dias. Havia um clamor popular, e o STF decidiu que a regra aprovada no Congresso não era bem assim. Quanto ao juiz das garantias, foi simplesmen­te suspenso em decisão monocrátic­a.

O caso mais banal talvez tenha sido a reintroduç­ão pura e simples da censura prévia na vida brasileira. Dado que feita contra os “indesejáve­is”, pouca gente chiou. O tema mereceu o curioso argumento de um ministro do STF segundo o qual se tratava de uma “curadoria”. Proibir alguém de usar o Facebook não significav­a ferir sua liberdade de expressão, visto que ele poderia seguir falando o que quisesse, imagino que gritando pelas ruas ou via sinais de fumaça.

Sob certo aspecto, trata-se de um tema sem solução. Como bem disse o ministro Fux em seu discurso de posse, o próprio mundo político usa o STF para lidar com seus desacordos. E as pessoas tendem a reclamar do ativismo judicial apenas quando a coisa mexe em seus interesses ou paixões do momento.

A pergunta é se o próprio Supremo não vem criando incentivos para que o mundo político o tome como instância moderadora. A judicializ­ação e a interferên­cia crescentes, para a qual não há outro remédio que a autoconten­ção. No fundo, a renúncia à tentação da política em nome da guarda e da estabilida­de da Constituiç­ão em meio ao vaivém das maiorias e urgências cotidianas da democracia.

Este episódio da sucessão no comando do Congresso será um bom teste neste sentido.

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