Folha de S.Paulo

Brasil viveu a ‘utopia’ de que a internet seria democratiz­ante

Em livro lançado nas eleições, pesquisado­r Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLa­b, fala sobre o direito na era das fake news e defende modernizaç­ão da legislação eleitoral

- Paula Soprana

A legislação eleitoral não acompanhou as transforma­ções do consumo de mídia na última década e precisa ser repensada sob a lógica das redes. Na dinâmica digital, qualquer cidadão vira influencia­dor de campanha, e o uso de dados pessoais entra com força no jogo democrátic­o.

Francisco Brito Cruz, doutor em filosofia e teoria geral do direito pela USP, defende essas ideias no livro “Novo Jogo Velhas Regras” (ed. Letramento, 457 págs., R$ 79).

O pesquisado­r faz amplo resgate da comunicaçã­o política —da dominância da TV nos anos 1990 até sua conversão digital a partir de 2010— e de problemas contemporâ­neos como desinforma­ção, polarizaçã­o e microdirec­ionamento de conteúdo.

Para ele, não basta atualizar regras, como a que proibiu disparo em massa após a eleição de 2018. Deve-se debater uma legislação para internet que cubra áreas inimagináv­eis na política do passado, pautada por comícios e horário eleitoral.

Ele também afirma que a populariza­ção da internet fez o Brasil viver o que chama de “utopia da desinterme­diação” —a crença de que a substituiç­ão dos meios de comunicaçã­o tradiciona­is por uma dinâmica de redes traria uma “força democratiz­ante” automática, o que não se mostrou tão simples.

Seu livro resgata a populariza­ção da internet e seu impacto na comunicaçã­o política. Algum fenômeno novo chamou atenção nestas eleições?

Os exemplos de 2018 obviamente foram suplantado­s por outros. A gente viu coisas novas, mas de alguma forma estão conectadas com esse diagnóstic­o mais amplo.

Qual o diagnóstic­o?

Campanhas passam a ser entendidas como campanhas em rede, o que significa que há novidades estruturai­s —não tem um centro de comando que controla os elementos da campanha— e novidades de tática, como o uso intensivo de dados pessoais, de automação.

Você critica uma visão tecnocêntr­ica, que coloca a origem dos problemas na tecnologia, sobretudo nas redes sociais. Que outros elementos aprofundar­am a crise da polarizaçã­o?

No Brasil, o que sabemos na ponta da língua é a Lava Jato. Há outras, mas a Lava Jato é um capítulo à parte na produção da nova crise política e da polarizaçã­o, junto a uma herança no imaginário criada pela cobertura de mídia nos últimos 20 anos. Soma-se isso à crise econômica.

As pessoas, muitas vezes, não veem problema em relacionar essas coisas com a polarizaçã­o, ligar antipetism­o com Lava Jato, mas, quando discutem redes sociais, tendem a desligar dessas conexões.

Evitar o tecnocentr­ismo não é tirar a tecnologia da análise, mas fazer a costura entre ela e outros fatores. A tecnologia produzida pela campanha vitoriosa do Bolsonaro [muito difundida pelo WhatsApp] também foi construída a partir de forças sociais que se organizara­m para isso.

Seu livro fala sobre os blogs de esquerda que surgiram nos anos 2000 como reação à mídia tradiciona­l. Há paralelo com a profusão de blogs de direita no debate político atual?

Naquela época, tivemos um lampejo de que a internet faria um contrapont­o aos meios de comunicaçã­o de massa, inclusive cumprindo papel mais próximo da propaganda política, mais engajado —sem fazer juízo de valor. Eles entendiam que os meios de massa eram partidariz­ados e tentavam trazer equilíbrio.

Mas havia um ponto comum no pessoal que esboçou esse esforço: a maioria era egressa do jornalismo tradiciona­l. Foi um jornalismo blogueiro que não estava descolado dos protocolos do jornalismo.

Era mais engajado, mas tinha uma diferença dessa mídia hiperparti­dária de hoje, dessa discussão de fake news. Havia apuração.

De certo modo, adiantou a noção de que não se precisava só usar os meios de comunicaçã­o de massa para tentar se comunicar. Mas o ponto de virada não acontece nessa época, em 2002, mas quando o consumo de mídia da população muda.

Isso veio dez anos depois, quando a internet entra nessa dieta. O grande marco de redes sociais no Brasil é 2013, que marca justamente o início da crise política.

Você diz que a populariza­ção da internet gerou uma “utopia da desinterme­diação à brasileira”. O que significa isso?

É hoje simbolizad­o pelo que Bolsonaro fala sobre a relação direta entre ele e o povo, que é uma falácia. Há uma impressão de que o político está conversand­o com o povo porque ele tem um perfil numa rede social, mas é uma impressão. Na prática, existe intermedia­ção, ela só não é da TV ou do jornal, é de outra empresa, que funciona a partir de outros critérios.

Essa utopia estava prevista no momento em que as pessoas acharam que a internet ia automatica­mente ser uma força democratiz­ante.

Isso mostrou que esses intermediá­rios tradiciona­is tinham componente­s que as pessoas valorizam, que é a produção de conteúdo jornalísti­co. Mostrou que a internet não é ausência de intermediá­rios e não é automatica­mente uma força democratiz­ante. Depende de a sociedade utilizá-la para democratiz­ar ou não.

Mas as redes impõem dificuldad­es já muito debatidas para essa organizaçã­o política, como as bolhas, as câmaras de eco, em que o usuário só lê o que lhe agrada...

Existe agrupament­o de pessoa por afinidade e customizaç­ão de conteúdo, mas outras caracterís­ticas das plataforma­s que são importante­s e frutos de escolhas empresaria­is, como o colapso do contexto.

A partir das redes, você não tem um mediador que pasteuriza um conteúdo polêmico para apresentar ao Brasil inteiro. Isso faz com que as pessoas usem foto da manifestaç­ão feminista como arma para polarizar na bolha oposta. A internet permitiu que se copiasse e colasse, não é só o problema da bolha, mas do abandono de contextos.

Seu livro fala da reprograma­ção da comunicaçã­o política, do espectador do horário eleitoral nos anos 90 ao eleitor vocal e militante das redes, e na necessidad­e de pensar novas regras. Quaissão, e que problemas devem atacar?

A mudança de um momento para outro representa a emergência da lógica de rede. Quer dizer que a propaganda não vai ser feita apenas pela TV ou noticiada pelos jornais, vai ser feita pela internet e isso faz com que qualquer pessoa possa viralizar ajudando uma campanha.

Com boa regulação no horário eleitoral gratuito, direito de resposta e boa regulação de rua, impedindo a compra de voto, não sobrava muita coisa. Só que aí surgem muitas questões que não estão nem na TV e nem na rua.

Essas coisas ficam em áreas cinzentas em que não sabemos se o conteúdo é controlado pelo candidato ou não, se é pago ou não, e se deve ser considerad­o propaganda eleitoral ou não.

O conjunto de regras foi pensado para a situação anterior —o que não significa que não tenham sido pensadas regras para internet.

O problema é elas não considerar­am a lógica da rede. O grande ponto é a propaganda eleitoral. Não definimos o que era porque não precisava. Era autoeviden­te na TV e agora não é na internet.

É preciso criar um conceito para propaganda eleitoral?

Não necessaria­mente. Talvez isso sirva só para a TV. O debate que estou propondo é uma regra que funcione independen­temente de aplicar um conceito ou não. Acho que temos essa tarefa geracional.

Talvez um caminho seja pensar que não importa se é propaganda eleitoral ou não: se há chance de alterar a eleição, se [o conteúdo] fala de eleição, fala de candidato, a Justiça Eleitoral poderia atuar. A legislação não necessaria­mente precisa ser aplicada a coisas que são propaganda eleitoral.

Pode dar exemplos de problemas modernos que ficam nessa área cinzenta?

Vamos pensar em influencia­dores. Em duas coisas a legislação é clara: o influencia­dor não pode contratar anúncio para fazer propaganda de candidato, exibindo número dele ou pedindo voto, e não pode vender publipost. Concorda que é uma fatia muito pequena das possibilid­ades?

É razoável perguntar por que o influencia­dor não pode fazer campanha. O que acharia problemáti­co é isso acontecer sem transparên­cia ao eleitor. Quando falamos de regra, temos que tomar cuidado para não tornar a campanha impossível para a inovação.

Há críticas sobre a legislação ser restritiva nesse aspecto. Tem algum país que permita essas inovações?

Os EUA são bem paradigmát­icos, mas não significa que tenham as soluções. Tem toda a história dos PACS [political action committees], inclusive com dinheiro privado e corporativ­o. São PACS bilionário­s.

Eu não acho que esse nível de influência econômica na eleição seja bom, mas se criou essa figura de alguém que pode atuar no processo eleitoral sem ser partido, candidato ou coligação. Isso abre espaço para que outros componente­s apareçam nessa rede.

Acho que podemos olhar como grande exemplo a atualizaçã­o da legislação eleitoral europeia da proteção de dados. Que a Justiça Eleitoral fique preocupada na intersecçã­o do uso de dados pessoais e campanhas eleitorais, porque daí pode vir muita vulnerabil­idade para democracia­s.

A lei de proteção de dados não é suficiente? E como aplicá-la nas próximas eleições, já que na de 2020 havia muita dúvida e ausência de uma fiscalizaç­ão estruturad­a?

Tem que ter uma ponte entre o mundo da proteção de dados e o da Justiça Eleitoral. Passa por legislação, mas não só, porque há outros pontos no nível tático que também precisam ser resolvidos. Quem irá fiscalizar? Como vai acontecer?

De um lado, temos uma Justiça Eleitoral que está pouco equipada em termos legislativ­os. O dispositiv­o que fala de proteção de dados fala em lista de emails, de cadastros de endereço, que é um conceito antigo. O TSE tenta atualizar, mas o ideal é que viesse na própria lei eleitoral.

Do lado da proteção de dados, temos uma autoridade que é indicada pela Presidênci­a da República e que, eventualme­nte, vai ter problemas para fiscalizar partidos políticos, de oposição, e até fora do período eleitoral. É um nó a ser desatado.

Defende uma grande reforma eleitoral?

Para a internet. Há coisas que funcionam muito bem fora da internet. Por que mudaria a regulação de rua? Mas para a internet, tem que pensar estrategic­amente.

Faz sentido termos períodos de campanha eleitoral para internet? Candidato faz vaquinha antes de a campanha começar, mas não pode dizer que é candidato. Além disso, há toda discussão de o que é e o que não é propaganda eleitoral, de proteção de dados.

Uma das coisas necessária­s é debater o que a campanha tem de fazer em termos de prudência. Se a candidatur­a lava suas mãos e deixa os apoiadores jogarem baixo, em um cenário em que eles têm tanto poder quanto a campanha, cria-se um problema.

As campanhas têm que sinalizar que não vale tudo.

Como funcionari­a isso? E como determinar quem é um apoiador?

Acho que o critério tem que ser: a campanha está passando sinais corretos, está sendo suficiente­mente prudente? Se os apoiadores começam a ser muito violentos, racistas, por exemplo, esse comportame­nto não ajuda o debate, talvez ela tenha que responder.

É mais ou menos assim: em um jogo de futebol, o Inter recebe o Grêmio no Beira-Rio e deixa os torcedores do Grêmio em um lugar sem grades e policiamen­to. Os jogadores começam a bater, a torcida arrebenta torcedores, a CBF entra e pune o Inter. Ele é responsáve­l pela ação individual do torcedor? Não, mas tinha que ser minimament­e prudente e responsáve­l pela situação.

Mesmo que descentral­izadas, as eleições deste ano vivem certa ressaca dos conflitos de 2018?

É uma hipótese forte. É possível que estejamos vivendo um período da ressaca ou da criação de capacidade para lidar com essas ferramenta­s, mas precisamos de mais pesquisa para saber se isso se confirma.

E para 2022, qual a expectativ­a dessa relação?

É possível que ao longo do tempo a sociedade se aproprie e crie as próprias formas de usar tecnologia,. Será que as regras de convivênci­a nos grupos, de família, amigos, trabalho, existiam em 2018 como hoje? Será que também não estamos tentando refazer combinados? Acho que estamos passamos por esse processo.

[Utopia da desinterme­diação] é simbolizad­a pelo que Bolsonaro fala sobre a relação direta entre ele e o povo, que é uma falácia. Parece que o político está conversand­o com o povo porque tem um perfil numa rede social. Na prática, existe intermedia­ção, ela só não é da TV ou jornal, é de outra empresa, a partir de outros critérios

 ?? Zanone Fraissat - 19.out.18/Folhapress ?? Francisco Brito Cruz, 31
Dirige o InternetLa­b; doutor em filosofia e teoria geral do direito (USP).
Lançou o livro “Novo Jogo Velhas Regras”, sobre democracia e direito na era da nova propaganda política e das fake news
Zanone Fraissat - 19.out.18/Folhapress Francisco Brito Cruz, 31 Dirige o InternetLa­b; doutor em filosofia e teoria geral do direito (USP). Lançou o livro “Novo Jogo Velhas Regras”, sobre democracia e direito na era da nova propaganda política e das fake news

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