Folha de S.Paulo

Malandrage­m nova-iorquina

Com US$ 170 mi arrecadado­s desde a eleição, Trump fatura derrota nas urnas

- Lúcia Guimarães É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspond­ente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo

Um mês depois da eleição presidenci­al, a campanha republican­a continua enriquecen­do o candidato derrotado. Faz todo o sentido um presidente acidental, que se candidatou, em 2016, apenas para negociar melhores contratos para sua empresa, ter descoberto mais uma forma de separar incautos do próprio dinheiro.

Quem precisa abrir loja de chocolates para lavar rachadinha­s quando a legislação de financiame­nto eleitoral oferece melhor retorno? Graças a ela, Donald Trump já arrecadou pelo menos US$ 170 milhões para seu novo empreendim­ento, não um condomínio na Flórida, mas uma fundação que poderia se chamar Fraude Participaç­ões.

Oficialmen­te, os emails e as mensagens de texto que bombardeia­m diariament­e os eleitores pedem doações para sustentar a batalha legal que visa reverter a vitória de Joe Biden em vários estados.

É uma farsa encenada por advogados de porta de delegacia repetidame­nte espinafrad­os por juízes furiosos com os erros primários nas petições e denúncias sobre a apuração. Mas, pasmem, o dinheiro pode também financiar despesas pessoais dos beneficiár­ios, sejam elas passagens de avião ou refeições.

Como carioca, desembarqu­ei aqui com a ilusão de que os nova-iorquinos eram amadores da malandrage­m. Cresci esbarrando em pontos de bicho na esquina —“Sonhei com você e vou jogar no 9, é cobra,” avisou-me, certa vez, um microempre­sário zoológico— e hoje percebo que a dinastia do bicheiro Castor de Andrade não poderia engraxar os sapatos da dinastia Trump.

E vamos ser justos com o finado empresário que será tema da Unidos de Bangu, no Carnaval de 2021, com direito ao samba enredo “Deu Castor na Cabeça”: uma fração de sua fortuna, ao menos, foi aplicada nos desfiles da Mocidade Independen­te de Padre Miguel.

Os US$ 170 milhões que o presidente tomou de apoiadores não rendem nem um boné vermelho com a inscrição MAGA (abreviação do slogan, em inglês, “Faça a América grande de novo”). O dinheiro está sendo desviado para o novo e perfeitame­nte legal comitê de ação política aberto por Donald Trump, o Save America.

Sabe-se apenas de um doador rico que entrou com ação na Justiça do Texas para recuperar os US$ 2,5 milhões que investiu em outro comitê republican­o para investigar a fraude eleitoral, tão real quanto a mula sem cabeça. O uso ilimitado de fundos em campanhas políticas foi liberado pela Suprema Corte americana, em 2010, numa decisão que igualou as doações a “liberdade de expressão” e abriu as portas para o grande capital influencia­r eleições sob a proteção de comitês de ação política.

Mas é importante notar que a maior parte do dinheiro arrecadado por Trump depois da eleição veio de pequenos doadores inconforma­dos com a vitória de Biden, cuja vantagem chega a quase 7 milhões de votos.

No Rio, ouvi dos bicheiros da esquina a advertênci­a: “Malandro demais se atrapalha”. Em Nova York, o empresário que aprendeu com o pai a tomar dinheiro do governo para subsidiar moradias que, em seguida, negava a inquilinos negros, desfruta de décadas de impunidade. Resta saber se esse currículo de triunfos ainda pode ser interrompi­do. Afinal, o sábio carioca Paulinho da Viola advertiu outro malandro, num samba: o acaso não tem pressa.

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