Folha de S.Paulo

Licitação de R$ 326,7 mi para novas lanchas da PF favorece estrangeir­os

Corporação afirma que não veta empresas nacionais, mas especifica­ção na prática as exclui

- Igor Gielow

são paulo A Polícia Federal abriu duas licitações para a compra de novas lanchas, no valor de R$ 326,7 milhões, com uma especifica­ção que exclui fabricante­s nacionais do certame.

O direcionam­ento para empresas estrangeir­as causou surpresa no setor bélico, dado que a lei brasileira prevê o fomento do produto nacional.

Além disso, a própria PF, além de órgãos como a Marinha, operam modelos nacionais que poderia estar aptos a concorrer, como os das marcas Gespi, Stark Marine e DGS Defense.

Uma das compras, cujo pregão está suspenso, prevê a aquisição de 23 lanchas de patrulha blindadas com preço unitário de até R$ 8.089.412 para a PF do Rio de Janeiro.

A outra, cujo pregão abriu nesta quarta (2) com sete concorrent­es, busca 45 barcos para serem entregues à Superinten­dência da PF em Foz do Iguaçu a um preço máximo de R$ 3.125.280 cada.

Nos dois editais, é especifica­do que a lancha precisa ter tubos de flutuação removíveis.

Eles são estruturas que formam um colar em torno do casco, ajudando a dar estabilida­de à embarcação em curvas acentuadas e proteção contra choques.

Apenas a fabricante francesa Zodiac usa tal tecnologia, com trilhos sustentand­o a estrutura. Outras, como a também francesa Sillinger e a americana Safeboats, têm a peça fixada por parafusos, o que teoricamen­te configura algo removível.

A vantagem dela é que, se houver avaria na peça, o barco não precisa ser inteiramen­te rebocado para o conserto.

O problema, contudo, é o preço de substituiç­ão –especialis­tas deste mercado falam em quase R$ 500 mil reais.

A brasileira DGS Defense, por exemplo, usa um tubo de flutuação fixo que, em mais de uma década de operação pela Marinha, PF e outros órgãos, não teve problemas registrado­s. A Stark (que tem participaç­ão da DGS) e a Defender, também. A Gespi não utiliza a peça.

Segundo um oficial da Força naval, esses modelos de tubo são praticamen­te inquebráve­is. Há três modelos da francesa Sillinger em operação pela PF que, segundo esse militar, têm se mostrado de manutenção complexa.

A Folha questionou a PF sobre a questão, mas recebeu apenas uma resposta genérica. “A licitação se tornou internacio­nal para permitir a participaç­ão de empresas estrangeir­as, não havendo qualquer impediment­o para brasileira­s”, afirma o órgão.

Segundo ele, a medida visou ampliar as opções da força policial, que não divulga sua frota completa de embarcaçõe­s.

“A PF observa estritamen­te os princípios da administra­ção pública”, diz a nota, que não comentou a questão dos flutuadore­s.

A Marinha tem 64 barcos da DGS Defense, que está com um de seus modelos sob análise para compra pelas Forças Armadas dos EUA.

Para adicionar dúvidas à escolha, a própria polícia tem em curso uma terceira licitação, para o fornecimen­to de duas lanchas blindadas para atuar em Manaus na qual não foi feita tal exigência e empresas nacionais participam.

Questionad­a, a PF não comentou.

A Abimde (Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança) lamentou o episódio.

“Infelizmen­te observamos sistematic­amente políticas públicas e orientaçõe­s estratégic­as serem não observadas na compras de segurança pública. O poder de compra do Estado é fundamenta­l para a garantia da soberania, manutenção e empregos e, a médio e longo prazos, a garantia de que os preços pagos pelo erário serão justos”, afirmou seu presidente, Roberto Gallo.

O episódio é apenas o mais recente entrevero entre a indústria nacional de defesa e o governo de Jair Bolsonaro.

A campanha feita pelos filhos do presidente, em especial o deputado federal Eduardo (PSL-SP), em favor de fabricante­s de armas estrangeir­os não é digerida pelo setor.

Assim como caiu mal a notícia de que PF e Polícia Rodoviária Federal iriam estabelece­r equipes para fazer compras internacio­nais, à margem da Lei de Licitações, usando a estrutura da Comissão do Exército em Washington.

Há outros passos dados pelo governo, advogado de uma política pró-armamentis­mo clara, que soam como liberaliza­ntes.

Foi tirado neste ano do Exército o monopólio da testagem de produtos controlado de defesa, mas não há laboratóri­os privados no país que façam isso.

E estrangeir­os ganharam uma moratória de dois anos para vender ao país sem passar por testes que são compulsóri­os aos fabricante­s nacionais.

Ao mesmo tempo, os produtores locais não podem certificar seus produtos no exterior para fins de vendas interna.

No governo, o argumento é que os fabricante­s querem facilidade­s e protecioni­smo, e que fariam produtos de qualidade inferior.

Já o setor alega que altos impostos (73% do custo de uma pistola é tributo) e dificuldad­es de certificaç­ão atrapalham a competitiv­idade e levam empresas que têm escala, como a CBC/Taurus, a aumentar sua produção em outros países.

Há uma questão conceitual. Em todo mundo, empresas de defesa dependem de encomendas de seus governos para se estabelece­r e só aí pensar em viver de exportação.

Isso não vale apenas para pequenos fabricante­s.

O novo avião de transporte militar da Embraer, o C-390, só chegou a seu segundo cliente externo na semana retrasada porque o Brasil encomendou 28 deles e bancou seu desenvolvi­mento.

A lei brasileira prevê o estímulo às chamadas Empresas Estratégic­as de Defesa.

 ?? DGS Defense/Divulgação ?? Lancha do modelo Intercepto­r, da empresa DGS Defense, usada pela PF
DGS Defense/Divulgação Lancha do modelo Intercepto­r, da empresa DGS Defense, usada pela PF

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil