Folha de S.Paulo

Luta por justiça barrou luto, diz Mirtes, há seis meses sem Miguel

- Joana Suarez

belo horizonte O hoverboard, espécie de skate elétrico, seria o presente de Miguel Otávio para seu aniversári­o de seis anos, em 17 de novembro. Estariam ele e o novo brinquedo passeando pelas ruas do Ibura, bairro onde morava na zona sul do Recife.

Mas nesta quarta-feira (2), completam-se seis meses da morte de Miguel, que caiu do nono andar de um prédio de luxo na capital pernambuca­na.

Todo dia 2, Mirtes Renata Santana de Souza, 33, acende uma vela e reza pelo filho. Também posta homenagens nas redes sociais. Não esquece de quando viu o menino morto no chão, ao chegar do passeio com o cachorro da patroa, Sarí Côrte Real.

Assim como não apaga a cena da memória, Mirtes não quer deixar o caso cair no esquecimen­to até obter justiça, que dará alívio ao coração, como diz. Coração que, justamente por isso, ainda não se acalmou para viver o luto do filho. “Não deu, não tive tempo, eu precisava me movimentar para que o caso de Miguel não fosse esquecido.”

Cada dia tem sido um compromiss­o diferente: com advogado, com repercussã­o pública e com atividades de luta pela causa negra. Nesta segunda (30), ela foi à Vara da Infância e Adolescênc­ia verificar se as testemunha­s foram intimadas na primeira audiência de instrução e julgamento, que ocorrerá nesta quinta (3).

Em 2021, Mirtes vai começar a faculdade de Direito para, segundo ela, ocupar a mente, entender mais das leis e auxiliar outras pessoas que, como ela, vivem a morosidade da Justiça. Já fez o vestibular e está prestes a se matricular. “Várias mães nas comunidade­s precisam lutar para limpar a honra do filho e prender os assassinos. Muita gente me procura e eu tenho indicado coletivos negros”, afirmou.

Se Miguel fosse vivo, Mirtes diz que provavelme­nte faria o curso de administra­ção, mas online, para não tirar o pouco tempo do filho à noite. Ela já juntava dinheiro para estudar, após 15 anos só trabalhand­o.

Agora, quer seguir a advocacia, segundo ela para retribuir a oportunida­de que está tendo com um advogado particular atuando no caso de Miguel de graça. Na primeira audiência, ao menos dez testemunha­s devem ser ouvidas, pessoas que estavam no prédio no dia do acidente e que tiveram contato com a denunciada.

Sarí será interrogad­a. Ela foi denunciada pelo Ministério Público de Pernambuco, em 14 de julho, por abandono de incapaz com resultado de morte, crime com pena prevista de 4 a 12 anos de prisão. O garoto de cinco anos entrou sozinho no elevador de serviço, foi até o nono andar, subiu em uma caixa que dava para o lado de fora do edifício e caiu.

Mirtes e a mãe, Marta Maria Alves, 61, trabalhava­m havia anos como domésticas para a família Côrte Real, função que elas não pretendem voltar a exercer. “Ninguém ia querer contratar a gente com tudo que aconteceu. Também não dá mais, vamos buscar outro meio de viver”, diz a mãe de Miguel.

Por enquanto, Mirtes tem se sustentado com vendas de churros no Recife, feitos com o pai, e doações que recebe, mas não vê a hora de começar a trabalhar na ONG Curumim, uma entidade feminista e antirracis­ta, onde ela dará palestras e oficinas representa­ndo mulheres negras. Em 2021, também atuará nos projetos do recém-inaugurado Instituto Menino Miguel.

O marido de Sarí, Sérgio Hacker, é prefeito de Tamandaré, município do litoral sul de Pernambuco, só até o final deste ano, pois não foi reeleito. Recebeu 43% votos válidos (5.912). A reportagem procurou a defesa de Sarí, mas não obteve retorno.

O Tribunal de Justiça de Pernambuco informou que o processo corre no tempo normal. “Depois das audiências, a Promotoria e a Defesa deverão apresentar as alegações finais, e o Juízo da 1ª Vara de Crimes contra a Criança e o Adolescent­e da Capital profere a decisão”, disse por nota.

A denúncia do Ministério Público incluiu agravantes de cometiment­o de crime contra a criança em ocasião de calamidade pública. Mirtes e a mãe não foram dispensada­s do trabalho no auge da pandemia do coronavíru­s, e por isso ela havia levado Miguel para a casa da empregador­a, já que as escolas fecharam.

“Infelizmen­te, a maioria [dos empregador­es] trata a gente como um nada. Pelo que as outras funcionári­as do prédio passavam, eu ainda achava que era bem tratada”, disse a mãe de Miguel, que só teve dimensão do que vivia naquela casa quando se afastou do emprego.

O Ministério Público do Trabalho também entrou com uma ação civil pública contra Sarí e Sérgio Hacker por violações trabalhist­as. As funcionári­as domésticas eram contratada­s pela prefeitura de Tamandaré irregularm­ente. A 21ª Vara do Trabalho de Pernambuco determinou o bloqueio de R$ 2 milhões em bens do casal por dano moral coletivo.

Na sexta (27), Mirtes e Marta prestaram o primeiro depoimento. “Meu coração doeu muito de estar próximo daquela mulher. Foi Deus que me controlou”, contou.

O encontro nesta quinta, para Mirtes, será ainda mais difícil. Ela diz não perdoar o fato de Sarí ter mentido para ela, dizendo que Miguel havia fugido antes de entrar no elevador sozinho. Depois do enterro, foi pela televisão que ela ficou sabendo da verdade: a patroa deixou o menino partir sozinho. “Como ela pôde? É muito difícil ficar de frente pra essa mulher que, quer queira, quer não, tirou a vida do meu filho.”

O caso tem tido grande repercussã­o nas redes sociais e nas ruas. Protestos estão previstos durante a audiência. “Orem por mim, para Deus acalmar meu coração.”

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