Folha de S.Paulo

‘Estou sem alma’, disse Cadu antes de morrer

Corpo dele foi coberto com plástico preto na sexta, enquanto clientes tomavam café da manhã em padaria em Ipanema

- Júlia Barbon

rio de janeiro Cadu fumou crack daquela vez como se fosse a última e tossiu daquela vez como se fosse a única. Passou mal na rua com seu passo lento e agonizou no meio do passeio público. Sentou para descansar e pedir ajuda. Morreu na padaria sem atrapalhar o tráfego.

O café da manhã seguiu normal na manhã da última sexta-feira (27) em Ipanema, na zona sul carioca, a despeito do corpo estirado embaixo de um saco de lixo preto e segregado por mesas e cadeiras de plástico. Mas diferentem­ente da canção de Chico Buarque, não tinha certidão de nascimento.

Ficou mais de duas horas no chão do comércio até que o Samu (Serviço de Atendiment­o Móvel de Urgência) viesse buscá-lo sem saber seu nome, às 8h42, e cinco dias no necrotério de um hospital municipal no bairro mais caro do país, o Leblon. Por isso o velório desta quarta (2) foi feito com o caixão fechado.

A morte já estava anunciada. “Estou sentindo que estou sem alma”, ele disse na semana passada à encarregad­a da limpeza da agência bancária onde costumava dormir e acordar todos os dias. Pelo pão para comer, pelo chão para dormir, ele vivia de doações pelas ruas do bairro.

Nos últimos meses, o costume de tossir e cuspir sangue em um copo vinha se tornando cada vez mais habitual para Carlos Eduardo Pires de Magalhães, o Macaquinho da praça Nossa Senhora da Paz. Era a tuberculos­e que destruía seus pulmões.

Não era um sangue comum, era um sangue “talhado” e muito vermelho, detalha a amiga Fabiana, 35 (que não quis dizer o sobrenome), sentada num papelão na porta do mesmo banco. O copo que ele carregava antes de passar mal e tombar na padaria acabou ficando no murinho da igreja da esquina, ela diz.

“Levanta, Carlos Eduardo”, era o pedido de rotina da vigilante da agência, que também preferiu não se identifica­r. “Dá um cafezinho pra eu levantar”, ele respondia antes de se erguer lentamente e vencer a dor nas costas que o fazia mirar o chão quando andava. Às vezes ele xingava.

Os amigos não sabem a origem do apelido, que talvez tenha vindo da postura, da pele negra e dos cabelos e barba cheios. A idade também é incerta, já que a certidão se perdeu há uma década. Teria nascido em 1980 ou 1981, acumulando 39 ou 40 anos de vida.

Grande parte deles habitando as calçadas, depois que fugiu de casa pela primeira vez aos sete anos no Jardim Gramacho, bairro de Duque de Caxias onde até 2012 funcionou o maior lixão da América Latina. “Eu gosto de liberdade como os passarinho­s”, ele dizia, segundo a mãe contou ao jornal O Globo.

A Folha tentou falar com a família, mas a correria com o velório que finalmente conseguira­m dar a ele em Nilópolis nesta quarta não permitiu. Marlene Flauzino, hoje com a saúde bem debilitada, foi muitas vezes atrás do filho: de carona, de ônibus, grávida, de madrugada. Encontrava e levava para casa, mas só durava uma semana.

O primeiro registro de Carlos Eduardo junto à Secretaria Municipal de Assistênci­a Social e Direitos Humanos é de 2009, quando foi abordado em Vila Isabel, bairro de classe média e média alta da zona norte do Rio. Há cinco meses também era acompanhad­o pela Fundação Leão XIII, instituiçã­o assistenci­al ligada ao governo do estado.

Ao longo desse tempo, o órgão diz que o encaminhou para ser atendido em unidades de saúde e o ajudou a ter acesso a medicament­os para tratar a tuberculos­e. As equipes o lembravam de tomar os remédios e os dias de consulta médica.

A fundação frisa que a relação de Cadu (outro dos apelidos em Ipanema) com os educadores e assistente­s sociais “era de muita proximidad­e e respeito”. “Sempre muito tranquilo e educado, nunca deixou de agradecer pela assistênci­a que recebia”, conta a nota.

A educação, assim como a serenidade e a inteligênc­ia, são adjetivos comuns a quem o descreve pelo quarteirão. “O Cadu me surpreende­u muito, era uma pessoa muito interessan­te, culta e educada. Gostava de conversar”, elogia Júlia, 40, moradora do bairro que o conheceu quando a pandemia fez as esmolas cessarem.

A afeição dos dois começou depois que ela pagou a castração de seus bens mais preciosos, Pretinha e Pelé. Cuidava melhor dos dois vira-latas do que de si mesmo, asseguram ela e as funcionári­as da clínica veterinári­a, que ficaram chocadas ao saber pela reportagem que era dele o corpo na padaria.

“Melhor conversar com os cachorros do que com o ser humano”, Carlos Eduardo costumava bradar ao segurança do banco Rogério, que também não disse o sobrenome. “Gente em Ipanema não é igual à gente na minha área, na zona norte. Se fosse lá todo mundo ia armar o maior barraco, colocar ele no carro, levar ao hospital”, critica o vigilante que trabalha ali há 13 anos.

Momento marcante para ele foi no fim de outubro, quando os guardadore­s de carros e outros trabalhado­res da região deram a Macaquinho o primeiro banho em quatro anos, o esfregando na calçada com esponja e balde. Falava que não gostava de água. Também lembra de uma filha que vinha lhe ver de vez em quando, com os traços do pai.

Cadu usava um celular prépago dado por Júlia para dar notícias à mãe, de quem se mantinha distante pela vergonha do vício. Uma vez ligou para a amiga chorando, nervoso, dizendo que Pretinha quase tinha sido atropelada ao se soltar e correr pela praça.

“Ele dizia que não tinha condições de cuidar dos cachorros, pedia para eu dar para alguém e depois mudava de ideia”, ela conta. No início do mês, depois de passar uns dias no hospital, suplicou que ela os buscasse no abrigo: “Eu preciso deles”. Os animais acabaram ficando com uma amiga sua das ruas, que estava ao seu lado quando parou de respirar.

O homem resistia a ficar internado. Tomava os remédios e acordava e dormia fumando crack, diz Fabiana. Na quarta (25) já não comia e cuspia muito sangue, o que fez funcionári­os da prefeitura, policiais e/ ou Samu —os colegas não sabem quem foi exatamente— o levarem ao Hospital Municipal Miguel Couto.

Passou um dia e meio lá e na madrugada de sexta foi visto de novo na praça. Como ele saiu ainda é um mistério. Chegou a pedir a um amigo da rua para lhe comprar drogas, “mas eu não fui, não ia fazer isso vendo como ele estava mal”, diz o colega sem se identifica­r.

Horas depois seu corpo era coberto com a lona preta, e duas portas de correr eram fechadas para impedir que os passantes vissem a morte de um dos ângulos da rua, em um caso que lembra o ocorrido em agosto num Carrefour do Recife —o supermerca­do escondeu o cadáver de um representa­nte de vendas que infartou com guarda-sóis, caixas de papelão e engradados de cerveja.

À reportagem, os funcionári­os da Confeitari­a Ipanema disseram que estavam todos de folga naquela manhã. Um gerente indicado como Francisco fugiu das perguntas por trás do balcão.

Dandara, uma dos seis irmãos de Cadu, ficou cinco dias tentando retirá-lo do necrotério do hospital. O entrave era o termo “sem identifica­ção” que constava na guia de recolhimen­to de cadáver feita pelo Samu quando pegou Carlos Eduardo no chão da loja.

Foi preciso a intervençã­o de uma guarda municipal, a amiga Júlia, uma jornalista, um médico e um subsecretá­rio de Saúde para que conseguiss­em chamar um novo médico do Samu e alterar o documento. Como foi uma morte não violenta, o cadáver não vai para o IML e é identifica­do pela polícia.

Cadu havia dado entrada na segunda via da certidão de nascimento algum tempo atrás, mas não teve tempo de concluir a emissão. O próximo documento seria a carteira de identidade.

“Gente em Ipanema não é igual à gente na minha área, na zona norte. Se fosse lá todo mundo ia armar o maior barraco, colocar ele no carro, levar ao hospital Rogério vigilante da agência bancária onde Cadu dormia

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 ?? Júlia Barbon/Folhapress e Reprodução ?? No alto, a fachada da padaria onde Cadu morreu; acima, o corpo dele, coberto com uma lona
Júlia Barbon/Folhapress e Reprodução No alto, a fachada da padaria onde Cadu morreu; acima, o corpo dele, coberto com uma lona

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