Folha de S.Paulo

Desafios no campo da ficção

Mudança na cúpula da Globo sinaliza preocupaçã­o com dramaturgi­a

- Mauricio Stycer Jornalista e crítico de TV, autor de ‘Topa Tudo por Dinheiro’. É mestre em sociologia pela USP

Duas mudanças importante­s na direção da Globo, anunciadas no intervalo de oito dias, mostram a preocupaçã­o da empresa com a sua produção no campo da dramaturgi­a.

Ricardo Waddington foi nomeado novo diretor de entretenim­ento do grupo, no lugar do jornalista Carlos Henrique Schroder, que vinha acumulando esta função com outras e deixará a Globo em 2021.

Waddington fez carreira dirigindo novelas, posteriorm­ente atuou como executivo no comando de programas de variedades e, desde 2018, era diretor de produção da empresa.

Uma de suas primeiras medidas no novo cargo foi nomear José Luiz Villamarim para a estratégic­a função de diretor de dramaturgi­a, em substituiç­ão a Silvio de Abreu, que ocupava a função desde 2014.

Têm a mão de Villamarim algumas das produções menos convencion­ais exibidas pela Globo nos últimos anos, como a minissérie “Amores Roubados” e a novela “Amor de Mãe”.

Abreu se orgulha, com razão, de ter promovido a estreia de quase duas dezenas de novos autores de novelas. Mas pôs o pé no freio de inúmeras tentativas de ir além do óbvio e insistiu em ideias envelhecid­as.

São muitos e bem complicado­s os desafios da nova dupla.

A Globo tem dado sinais de que não pretende desacelera­r a produção de novelas. Ao contrário, o lançamento de dezenas de títulos antigos no seu serviço de streaming sinaliza a compreensã­o de que o velho folhetim é valioso patrimônio.

Ao mesmo tempo, a empresa precisa ser competitiv­a com as séries, um terreno em que concorrent­es estrangeir­os estão mais bem posicionad­os.

Outra dificuldad­e é a perda de talentos e a redução de custos, consequênc­ias de um processo drástico de enxugament­o que vem sendo aplicado.

Adolescent­es na tela

Como já tinha ocorrido com “Euphoria”, de 2019, outra série dedicada ao universo adolescent­e, “We Are Who We Are”, de 2020, me provocou um misto de fascínio e desconfian­ça.

Dirigida pelo cineasta italiano Luca Guadagnino, famoso pelo filme “Me Chame pelo Seu Nome”, de 2017, é também uma história sobre o cotidiano de uma turma de jovens americanos, mas ambientada no microcosmo de uma base militar no norte da Itália.

Ambas as séries —disponívei­s na HBO— desenvolve­m dramas sobre fluidez de gênero, experiênci­as com drogas, relações afetivas que parecem intensas, mas evaporam em instantes, e aventuras sexuais.

É difícil saber quanto dessas representa­ções sobre adolescent­es escritas e dirigidas por adultos têm pé na realidade que se propõem a retratar ou são apenas projeções —é isso que me deixa com o pé atrás.

“We Are Who We Are” é um pouco mais solar do que “Euphoria”.

Pode ser frustrante para alguns espectador­es, mas me agrada que Guadagnino se mantenha o tempo todo a uma certa distância, mais observando do que opinando sobre os seus personagen­s.

A história é ambientada em 2016, durante a disputa eleitoral entre Donald Trump e Hillary Clinton, mas a série raramente explora questões mais densas sobre a política do país.

Assim como “I May Destroy You”, também exibida recentemen­te pela HBO, a série de Guadagnino consegue fugir da obviedade. O segundo episódio, por exemplo, é praticamen­te idêntico ao primeiro, mas visto pelos olhos de um outro personagem.

Com direção original, bom texto e ótimo elenco, “We Are Who We Are”, ou somos quem somos, escapa das facilidade­s e oferece uma experiênci­a cada vez menos comum na televisão.

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