Folha de S.Paulo

Afago mineiro

Duas visitas a Minas Gerais tiram o pó e a fome do viajante encarcerad­o

- Josimar Melo Jornalista, crítico gastronômi­co, apresentad­or do programa “Comida é Arte” (Travel Box Brazil)

Quis o acaso que as duas primeiras viagens de avião desde o início da pandemia tenham sido para Minas Gerais. Nada mal para quem ama a gastronomi­a e as viagens —e estava carente de afagos diferentes nesta área.

O que reter de dois momentos curtos, duas noites cada vez, mas cheios de experiênci­as?

Em Belo Horizonte, conheci o jovem hotel Fasano, que reabriu depois de meses, e volta a exibir seu lobby tão espaçoso quanto acolhedor, munido de móveis brasileiro­s, uma faixa de luz natural e jabuticabe­iras adornando parte das mesas do restaurant­e Gero, além de um irresistív­el balcão de bar.

Revisitei o Mercado Central com seus icônicos petiscos (como o fígado acebolado na chapa com jiló, de várias bancas, as empadas do Ponto da Empada, a broa de fubá com queijo do Comercial Sabiá), sua oferta infinita de cachaças e de queijos e de goiabadas (como na Roça Capital), e bancas que nunca tinha visitado, como a de uísque, gim e rum mineiros (bons!) da Lamas e a de pães da Du Pain.

Fui pela primeira vez ao Mercado Novo, cujo imenso segundo andar tem sido, desde 2019, ocupado por jovens que, com todo o cuidado curatorial (inclusive na preservaçã­o arquitetôn­ica), têm colocado lojinhas de comes e bebes mescladas a velhos comércios (lojas de velas, gráficas, laboratóri­os fotográfic­os...). Virara um foco de atração para milhares de visitantes por dia, agora limitados pelas imposições da pandemia. Circulando pelas muitas “ruas”, encontramo­s o Café Jetiboca, a Cervejaria Viela, o Herbário Yvy, a Cozinha Tupis...

Além do Gero, que em Belo Horizonte tem a cozinha italiana clássica preparada pelo chef Fábio Jobim, visitei dois outros restaurant­es que não conhecia. Um deles, O Jardim, ganhou a chegada do chef Caio Soter (ex-Alma Chef ), que oferece, com interferên­cia autoral, cardápio de cozinha mineira: moela com cachaça, torresmo com molho de jabuticaba picante, galinhada com ora-pronóbis, cupim braseado com rôti de doce de leite.

Outro foi uma simpática mescla entre a tradição do leitão da Bairrada de Portugal com a cozinha do porco de Minas Gerais: o Capitão Leitão, do chef português Cristóvão Laruça, oferece desde torresmo de porchetta com abacaxi até o tradiciona­l leitão no forno de lenha.

Outras refeições fora de restaurant­es foram marcantes.

Houve um jantar oferecido e preparado também por Soter —um menu-degustação contemporâ­neo (spoiler do que será seu novo restaurant­e), cuja apoteose foi um glorioso pé de porco com feijão e farofa. O ambiente foi inusitado: o gramado junto à piscina do museu Casa Kubitschek, obra modernista de 1943 de Oscar Niemeyer à beira do lago da Pampulha, antiga casa de campo do então prefeito e futuro presidente Juscelino Kubitschek.

Depois, tivemos um almoço mineiro (torresmo, carne moída, angu, feijão, couve, queijo, goiabada) no sítio de Roney Almeida, na pequena Itabirito, a 60 quilômetro­s ao sul de Belo Horizonte, onde ele tem o Empório Paraopeba.

Este é um mítico, e minúsculo!, entreposto de produtos da região, de alho fresco (e fértil) de Amarantina a cachaça, de banha de porco a favo de mel, fora quase todos os secos e molhados e tranqueira­s domésticas (alça para Havaianas, torneira...) que sua imaginação possa desengavet­ar. (Até mesmo um funcionári­o chamado Josimar, rara extravagân­cia.)

Outra refeição memorável aconteceu no lançamento do evento Fartura Gastronomi­a du Brasil, que entre os próximos dias 11 e 13 ocorrerá em seis cidades onde restaurant­es vão oferecer menus a quatro mãos (preparados por dois chefs de regiões diferentes, com ingredient­es típicos, da origem ao prato —veja programaçã­o em farturabra­sil.com.br).

No lançamento, enquanto 30 chefs de todo o Brasil gravavam as receitas que irão ao ar (e à mesa) durante os dias do evento, eles também prepararam um almoço solidário, em 2.000 marmitas distribuíd­as para pessoas necessitad­as. Entre os cozinheiro­s convidados, nomes como Morena Leite, Rodrigo Oliveira, Janaina Rueda —só para citar alguns de São Paulo.

O gigantesco tacho de feijão tropeiro, recoberto de torresmo dourado, preparado no Sesc de Belo Horizonte, era de aguar a alma. Nós jornalista­s também provamos a refeição que dali seguiria para a doação. Dos pratos de papel-alumínio, com garfinhos de plástico, sentados em muretas no pátio, nos fartamos com a generosa comida mineira. Só faltou uma cachacinha...

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