Folha de S.Paulo

Horror no espírito

Autor da Flip, Chigozie Obioma publica romance cosmológic­o sobre um imigrante nigeriano e lamenta o racismo no Brasil

- Sylvia Colombo Uma Orquestra de Minorias Autor: Chogozie Obioma. Trad.: Claudio Carina. Ed.: Globo Livros. R$ 59,90 (456 págs.)

Autor da Flip, Chigozie Obioma publica romance cosmológic­o sobre um imigrante nigeriano e lamenta o racismo no Brasil.

buenos aires Como escrever um romance que fuja dos formatos tradiciona­is de narrativa? Que não seja em primeira, segunda ou terceira pessoa e que transcenda a voz do principal personagem, tendo narrado acontecime­ntos antes e depois da vida dele na trama?

Segundo o nigeriano Chigozie Obioma, de 34 anos, isso foi possível ao contar a história de “Uma Orquestra de Minorias” a partir do “chi” de seu protagonis­ta. Convidado da Festa Literária Internacio­nal de Paraty, que ocorre neste ano de maneira virtual por causa da pandemia do coronavíru­s, Obioma conta o que é o “chi” e como surgiu sua ideia de contar uma história a partir de seu ponto de vista.

“O ‘chi’ é o centro da cosmologia igbo [grupo étnico africano do qual faz parte]. É um espírito que está em cada indivíduo, mas que existia desde antes de sua existência física e que o ultrapassa depois que esse indivíduo morre”, ele diz.

“Ao mesmo tempo que é uma espécie de guardião espiritual de um indivíduo e, por isso, tem a habilidade de pôr pensamento­s em sua cabeça, nem sempre é respeitado. Eu sempre quis escrever um romance cosmológic­o, para com isso explorar a ideia de um narrador que transcende o tempo e que tem uma sabedoria acumulada que venha de muitas existência­s anteriores, além de, ao mesmo tempo, viver uma experiênci­a única em cada indivíduo.”

Obioma conta que a existência do “chi” estimulou a sua curiosidad­e desde cedo, porque sua mãe conversava com amigos e parentes com naturalida­de, comentando a essência do “chi” das pessoas.

“Isso tem um impacto na vida em sociedade na África distinta do que vemos na Europa ou na América, porque toda a cosmologia ocidental está baseada num sistema mais hierárquic­o que se reflete na estrutura política”, diz Obioma.

“Na Europa havia monarcas, havia a ideia de que algumas pessoas eram tocadas pela divindade e outras, não —é o caso de reis, rainhas e plebeus. Na nossa cosmologia, isso é diferente e se reflete na realidade de como nos estruturam­os como sociedade antes do contato com os europeus.”

Da mesma forma, ele diz, “há vários conceitos ocidentais que são herdeiros de uma cosmologia própria do mundo judaico-cristão, de mitos como o jardim do Éden, Adão e Eva, o nascimento do pecado, conceitos de livre arbítrio”. “Na África temos uma mitologia distinta que se reflete em conceitos políticos e sociais.”

O livro que Obioma apresenta nesta Flip, “Uma Orquestra de Minorias”, conta a história de um fazendeiro nigeriano que, por estar apaixonado por uma mulher, quer enriquecer e provar que merece seu amor. Por causa disso, vai ao Chipre —a parte turca da ilha—, mas é vítima de uma máfia que explora os imigrantes, perde dinheiro numa fraude e sofre com o racismo.

A história é parcialmen­te baseada na de uma pessoa que Obioma conheceu, quando ele mesmo esteve morando na ilha, como estudante.

Seu amigo Jay, também nigeriano, que havia sido vítima desse tipo de fraude tão comum que é aplicada a estrangeir­os, perde muito dinheiro, vive uma grande desilusão e acaba morrendo numa circunstân­cia misteriosa.

“Disseram que foi suicídio, mas eu não acredito nessa versão. Ele havia sido enganado, estava longe da mulher que amava, ficou bêbado e subiu no telhado do edifício onde vivíamos, mas, ao tentar descer, caiu. De todo modo, é uma tragédia que resume os dramas de muitos imigrantes.”

Obioma nasceu em Akure, na Nigéria, de uma família com 12 irmãos, e desde cedo se interessou pela mitologia grega e pela literatura britânica.

“Passava os dias lendo, a leitura sempre foi para mim um refúgio.” Ao ter um visto negado para estudar no Reino Unido, foi para o Chipre. Não muito contente ali, se inscreveu para uma bolsa na Universida­de de Michigan, nos Estados Unidos, onde terminou fazendo seu mestrado. Hoje dá aulas na Universida­de de Nebraska, no mesmo país.

Com seu primeiro livro, “Os Pescadores”, ele foi finalista do Man Booker Prize, o maior troféu da literatura em língua inglesa, há cinco anos. O mesmo ocorreu com o romance mais recente, finalista da mesma honraria no ano passado.

“São essas curiosidad­es da vida. O Reino Unido me causou uma grande frustração quando eu era ainda um adolescent­e, ao me negar um visto de estudante. Eu tinha muita ilusão de ir viver lá, na terra de autores a quem admiro muito, como Shakespear­e. Depois disso, tive de passar por muitas coisas, e agora me convidam todo o tempo para ir a palestras, porque fui indicado a prêmios. É uma ironia”, conta o escritor.

Obioma lamenta não poder ir ao Brasil para a Flip por causa da pandemia. Ele esteve no país há dois anos, para um evento literário em Brasília.

“Gostei muito de ver um país tão diverso, mas sei que ainda há muitos problemas relacionad­os ao racismo. Li sobre o homem que foi morto a pancadas no supermerca­do, achei algo terrível e surreal, vindo de pessoas que nem sequer tinham a autoridade de serem policiais. É algo criminoso e significat­ivo de uma sociedade que precisa de mudanças. Eu me alegro que as vozes negras da literatura e das artes estejam sendo ouvidas agora.”

 ?? Jairo Malta ?? Ilustração inspirada em retrato do escritor nigeriano Chigozie Obioma e na capa de seu livro ‘Uma Orquestra de Minorias’
Jairo Malta Ilustração inspirada em retrato do escritor nigeriano Chigozie Obioma e na capa de seu livro ‘Uma Orquestra de Minorias’

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