Folha de S.Paulo

Animações da Pixar, como ‘Soul’, falam sobre morte com as crianças

Últimas animações da Pixar tentam falar com as crianças sobre a morte, que ganha a sua leitura mais profunda no filme ‘Soul’

- Carolina Moraes

Ao morrer, talvez encontremo­s nossos antepassad­os como caveiras numa dimensão cheia de animais alados. A depender dos universos criados pela Pixar em suas últimas animações, pode ser que também voltemos por um dia ao mundo dos vivos a partir de uma mágica antiga realizada por nossos filhos.

Esses são alguns dos contornos que o estúdio deu ao tema que se tornou central em seus últimos longas —a morte. Ela aparece em “Viva - A Vida É uma Festa”, de 2017, “Dois Irmãos - Uma Jornada Fantástica”, de 2020, e “Soul”, lançado no último Natal na plataforma de streaming Disney+.

Humberto Neiva, diretor do curso de cinema da Fundação Armando Álvares Penteado, a Faap, diz que a Pixar já tratava de assuntos mais para adultos desde o início de suas produções, mas de modo tímido.

“Ela começa com temáticas infantis e situações para crianças”, diz ele, lembrando que as narrativas sempre abordaram situações cotidianas e, por isso, exploram emoções universais, como o amor e a raiva.

Com “Viva”, ele afirma que o estúdio mergulhou em questões mais profundas —e passou a apresentar animações que, de tanto que se aproximam de inquietaçõ­es adultas, nem se parecem com produções feitas para as crianças.

No filme, um garoto passa para o mundo de seus antepassad­os no Dia dos Mortos, tradiciona­lmente comemorado no México. Ele descobre que, do lado de lá, os que não têm seus retratos dispostos em altares no mundo dos vivos acabam desaparece­ndo até do mundo dos mortos.

“Eles começam a tratar da morte no México, com essa caveira que pode ser um homem ou uma mulher. Ela não tem uma questão de gênero”, diz. Segundo ele, falar da morte de uma maneira não medrosa é uma das grandes sacadas da companhia para introduzir o tema no universo infantil.

Mas é em “Soul” que o estúdio dá o seu mergulho mais profundo no assunto e entraemque­stõesmetaf­ísicas, segundo o especialis­ta.

No longa, o músico Joe Gardner, primeiro protagonis­ta negro da Pixar, morre logo antes do show que definiria sua

carreira e tenta voltar à vida.

Ao fugir do chamado grande além, ele acaba caindo no grande antes, onde almas ainda por nascer moldam a sua personalid­ade, acham seu propósito de vida e então ganham seu passe para a Terra.

É nesta dimensão, inclusive, que a ideia de que as animações se aproximam cada vez mais do público adulto ganha um contorno mais claro.

Joe conhece 22, uma alma que não consegue —nem quer— achar o seu propósito mesmo depois de ter como mentores figuras como Carl Jung e Madre Teresa —personalid­ades bem mais presentes na cabeça dos mais crescidos.

“Apesar de trazer isso de uma forma leve, o filme trata de assuntos mais contundent­es da nossa criação, do nosso viver. É uma questão que nós adultos ficamos o tempo todo pensando. Por que eu vim para cá, qual a minha missão?”, afirma Neiva, o professor.

Outros filmes do diretor de “Soul”, Pete Docter, também já tratavam de temas tidos como adultos, como “Up”, de 2009, e “Divertida Mente”, de 2015.

No último, as personagen­s que controlam os sentimento­s da protagonis­ta se assemelham à tentativa de gênese emocional que Docter faz em “Soul”, em que almas ganham traços de personalid­ade.

O próprio “Toy Story”, primeiro filme da Pixar, lançado em 1995, discute a obsolescên­cia na terceira sequência da animação. Com seu dono crescendo, os brinquedos enfrentam o drama de nunca mais serem mais usados.

“Acho que, atualmente, os pais têm certa angústia em oferecer esse cardápio que tange realidades difíceis”, afirma Carla Camurati, uma das criadoras do Festival Internacio­nal de Cinema Infantil.

Na opinião dela, a Pixar traz, desde o seu surgimento, questões fundamenta­is da existência humana, sempre pondo o dedo na ferida. “Tem filmes que enaltecem só um lado mais bobo, infantiloi­de, que nada tem a ver com a criança necessaria­mente”, ela diz.

Humberto Neiva, da Faap, acredita que mergulhar na morte é um caminho de desenvolvi­mento da própria companhia, que encontrou uma linguagem madura para tratar desses assuntos difíceis.

Num artigo sobre por que a

Pixar parece tão brilhante ao falar sobre a morte, o jornal The Guardian também lembra um amadurecim­ento dos próprios cabeças da empresa.

Docter chegou aos 52 anos, idade em que o tema da morte já é mais recorrente. O jornal também diz que Lee Unkrich, diretor de “Viva - A Vida É Uma Festa”, resolveu deixar a Pixar aos 53 anos para passar mais tempo com a família.

Neiva aposta que, depois de explorarem as possibilid­ades da morte, outras questões existencia­is devem aparecer nas animações da empresa.

Em “Soul”, costurada à ideia de morte, uma segunda reflexão é posta pelo estúdio —do que vale estar vivo? Se primeiro o protagonis­ta acredita que seu propósito em vida é ser um grande músico, o desenrolar da história aponta para experiênci­as humanas considerad­as corriqueir­as como sua verdadeira missão.

“Vale a pena morrer por esse negócio de viver?”, se pergunta a alma 22 no filme. Se Joe, que teve uma vida considerad­a banal pela personagem, quer tanto voltar para a Terra, deve mesmo valer. Leia mais na pág. C2

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Divulgação Cena de ‘Soul’
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Divulgação Cena do filme ‘Soul’, de 2020, que mostra universo onde as almas moldam a sua personalid­ade

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