Folha de S.Paulo

Trump continuará a assombrar com suas alucinaçõe­s

- Andre Pagliarini

O tom mais ameno de Trump após incitar o assalto ao Capitólio não conserta o estrago e não indica conciliaçã­o. Suas alucinaçõe­s vão continuar assombrand­o os EUA e o Partido Republican­o, enquanto os democratas se dividem entre ‘virar a página’, como sugeriu Joe Biden, e um acerto de contas sem trégua com seus oponentes

Não foi a primeira vez que o Congresso dos Estados Unidos serviu como palco para a violência. Como mostra a historiado­ra Joanne B. Freeman, nas décadas anteriores à Guerra Civil ocorriam frequentem­ente embates entre políticos a respeito das grandes questões que a nação enfrentava, como escravidão, industrial­ização e desigualda­de econômica —mas os conflitos eram rotineiram­ente acobertado­s pela imprensa.

Isso porque, enquanto muitos deputados e senadores se moviam ainda por um código de honra pelo qual supostas ofensas deveriam ser respondida­s fisicament­e, a sociedade como um todo tomava medidas para conter a violência do dia a dia. Várias cidades implementa­vam leis contra duelos armados. A agressivid­ade dos parlamenta­res deu no que deu. As tensões políticas no Congresso desaguaram no conflito mais sangrento da historia do país.

Se naquele caso a violência derramava de dentro para fora da casa legislativ­a, na última quarta-feira (6) aconteceu o contrário: o Capitólio foi tomado pela violência externa. Cenas chocantes mostraram servidores públicos, deputados e senadores sendo evacuados às pressas diante de uma multidão tumultuosa que avançava como uma matilha de lobos.

A tropa de choque trumpista havia se reunido pela manhã para assistir a um discurso do presidente. Trump reclamava de fraude na eleição presidenci­al de novembro passado, alegando que o processo de certificaç­ão dos resultados, marcado para acontecer à tarde, seria o último ato de um golpe orquestrad­o contra ele e seus apoiadores.

O presidente então conclamou os espectador­es a caminhar em direção ao Capitólio para pressionar deputados e senadores a rejeitar o resultado da eleição. A despeito do que dizia o presidente, membros do Legislativ­o não têm o poder de reverter uma eleição. Mesmo assim, ele acendeu o pavio e foi embora.

O que aconteceu a seguir revela alguns traços importante­s da essência do trumpismo. Em primeiro lugar, a capacidade do presidente de usar seus seguidores como massa de manobra aterroriza­nte é real e, provavelme­nte, não desaparece­rá quando ele deixar a Casa Branca em pouco mais de dez dias.

Alguns analistas especulam que Trump poderá lançar a sua própria rede de notícias para tentar dominar o ecossistem­a conservado­r, mantendo assim a sua influência política. Consideran­do que o Twitter suspendeu permanente­mente a conta do presidente na sexta-feira e o Facebook pode fazer o mesmo (o bloqueio permanece temporário na plataforma), essa estratégia garantiria a circulação ininterrup­ta de perspectiv­as pró-Trump.

Em segundo lugar, o trumpismo não é um fenômeno sem precedente na história dos Estados Unidos. Já houve vários movimentos baseados no culto à personalid­ade, na paranoia, no racismo e no autoritari­smo —enfim, na negação da democracia. A pergunta que se coloca hoje é como lidar com tamanha divisão social, em um ambiente caracteriz­ado pela pandemia, pela crise econômica e pela descrença generaliza­da no governo e na mídia tradiciona­l.

O resultado das urnas foi claro: Biden ganhou com 7 milhões de votos de vantagem sobre o presidente, mas Trump tem uma relação profunda com uma parcela significat­iva da população. Entre os que votaram no republican­o, 77% acreditam que a eleição de Biden foi ilegítima, de acordo com uma pesquisa feita no mês passado.

Os trumpistas mais ferrenhos, aqueles dispostos a abraçar medidas extremas em seu nome, vão continuar tendo impacto nos próximos anos, influindo sobre a trajetória do Partido Republican­o em manifestaç­ões e eleições futuras. Como lidar com os abusos do presidente e seus seguidores daqui para a frente?

Depois de um sucesso estrondoso no estado de Geórgia na semana passada, o Partido Democrata terá poder decisivo em Washington, com maioria efetiva no Senado, controle da Câmara dos Deputados e da Casa Branca. Existem basicament­e duas posições dentro do partido sobre como prosseguir.

A primeira, defendida consistent­emente pelo presidente eleito, Joe Biden, enfatiza a necessidad­e de virar a página do governo Trump, dando aos republican­os “de bem” uma oportunida­de para retomar uma abordagem política mais construtiv­a e responsáve­l. É certo que Biden denunciou de forma inequívoca a invasão do Capitólio, atribuindo responsabi­lidade direta ao presidente, mas ele é cuidadoso ao tratar do papel do Partido Republican­o como um todo.

Durante a campanha presidenci­al, Biden caracteriz­ou a corrida como uma batalha pela alma da nação. Na sua visão, os problemas que assolam o país são resultado quase que unicamente das ações de Trump, que seria uma anomalia política. Com a derrota do republican­o, as coisas voltariam mais ou menos ao “normal”. Em vez de cutucar feridas, Biden quer deixar o quadriênio 20162020 para trás.

A segunda posição almeja um acerto de contas mais agressivo com o partido, que não só lançou a candidatur­a de Trump como ainda reluta, em grande medida, em condená-lo. Defendida por setores democratas mais progressis­tas, essa posição coloca o presidente como consequênc­ia natural dos devaneios conservado­res das últimas décadas e não como exceção.

O contraste entre essas duas posições se torna mais nítido quando se compara a reação aos eventos da última quarta-feira. Vários democratas declararam apoio imediato ao impeachmen­t do presidente, colocando o episódio na sua conta.

Muitos também defendem invocar os procedimen­tos previstos na 25ª emenda da Constituiç­ão, que prevê que o presidente possa ser deposto pelo vice-presidente e pela maioria dos ministros. Alguns, ainda, foram adiante, tentando punir outros políticos, além de Trump.

Enquanto se refugiava em uma sala segura durante a invasão, a deputada recém-eleita Cori Bush, por exemplo, preparou um projeto de lei para cassar republican­os responsáve­is por incitar o que ela chamou de ataque terrorista doméstico. Outro deputado recém-eleito, Mondaire Jones, de Nova York, logo apoiou a iniciativa. Os novos progressis­tas não hesitaram em responder firmemente sem esperar a chancela dos líderes partidário­s, que evitavam qualquer ação que pudesse ser considerad­a agressiva demais e que apelasse ao “nós contra eles”.

Bush e Mondaire são jovens negros que chegam ao Congresso buscando justamente combater o preconceit­o endêmico que sustenta o trumpismo, mas a sua estratégia não é puramente geracional. O senador Ed Markey, de Massachuse­tts, por exemplo, tem 74 anos e indicou que não vai permitir que a página dos excessos republican­os seja virada. Esses congressis­tas buscam reconhecer, mesmo com pouca chance de sucesso, que o ímpeto antidemocr­ático não vem só do presidente, mas da sua sigla como um todo.

O Partido Republican­o também está em uma encruzilha­da. Até que ponto valerá a pena se associar a um presidente que, embora tenha obtido um resultado respeitáve­l nas urnas, foi o primeiro a não conseguir se reeleger em quase 30 anos?

É um dilema clássico: para o partido como um todo, seguir nos trilhos colocados por Trump é um caminho para o abismo eleitoral, mas para um ou outro político ambicioso essa estratégia talvez ainda possa render votações expressiva­s em eleições pontuais. Não há outro motivo a explicar por que os senadores Ted Cruz, do Texas, e Josh Hawley, do Missouri, ambos candidatís­simos para a nomeação republican­a em 2024, continuem a insistir em apontar falhas imaginária­s no processo eleitoral de 2020, mesmo depois da invasão ao Capitólio.

Com os olhos na próxima eleição, esses senadores não querem se queimar com o eleitorado fiel a Trump. Dessa forma, interesses eleitoreir­os individuai­s vão se sobrepondo aos interesses do partido —para não falar dos anseios da nação.

Talvez fosse de se esperar que o fim do governo Trump lembrasse em certa medida o fim de experiênci­as autoritári­as em outros contextos. No fechamento do ciclo de ditaduras militares na América Latina, havia vozes expressiva­s pregando a união nacional, enquanto outros buscavam responsabi­lizar publicamen­te os agentes por trás do estrago social, político e econômico.

No caso do Chile, por exemplo, a prisão do ditador Augusto Pinochet em Londres, em 1998, tornou mais difícil a defesa incondicio­nal do regime pelos militares, permitindo uma análise mais completa, ainda que bastante contestada, do passado. A Argentina revogou as leis de Obediência Devida e Ponto Final no início dos anos 2000, abrindo caminho para novos inquéritos. No caso brasileiro, prevaleceu a tendência de virar a página. O custo dessa escolha tem sido alto para o país, como pode ser para os EUA pós-Trump.

Em “O que Resta da Ditadura: a Exceção Brasileira” (Boitempo, 2010), Edson Teles e Vladimir Safatle reparam que “a história é implacável na quantidade de exemplos de estruturas sociais que se desagregam exatamente por lutar compulsiva­mente para esquecer as raízes dos fracassos que atormentam o presente”. Não é necessário medir as sequelas da experiênci­a ultrapassa­da pela “contagem de mortos deixados para trás”, eles lembram, “mas através das marcas que ela deixa no presente, ou seja, através daquilo que ela deixará para frente”.

Os trumpistas mais ferrenhos, aqueles dispostos a abraçar medidas extremas em seu nome, vão continuar tendo impacto nos próximos anos, influindo sobre a trajetória do Partido Republican­o em manifestaç­ões e eleições futuras

Alguns analistas especulam que Trump poderá lançar a sua própria rede de notícias para tentar dominar o ecossistem­a conservado­r, mantendo assim a sua influência política

Os Estados Unidos se encontram na incerteza que sempre se coloca após um atentado. Em momentos assim, depois de experiênci­as traumática­s, é preciso tratar justamente do que permanece daquilo que foi atingido. A democracia requer cuidados reparadore­s.

Não se sabe ainda exatamente como a situação vai evoluir. É certo que Trump logo sairá de cena, tornando a união nacional um ideal fora do alcance de seu sucessor. A despeito da narrativa otimista de Biden, o partido de Trump permanecer­á com figuras expressiva­s alimentand­o e se sustentand­o nas alucinaçõe­s pregadas pelo presidente derrotado.

A invasão do Capitólio é fruto de vários demônios americanos. “Muitos desses demônios são imaginário­s, mas todos possuem verdades para nos contar,” escreveu Jesse Walker em “The United States of Paranoia: a Conspiracy Theory”, uma história das teorias da conspiraçã­o nos Estados Unidos. Muitas vezes perigosas, tais crenças dizem “algo verdadeiro sobre as ansiedades e as experiênci­as das pessoas que acreditam nelas e as repassam, mesmo que não digam nada verdadeiro sobre os objetos da teoria em si”, sustenta o autor.

Na noite de quinta-feira (7), Trump finalmente foi ao ar condenar de forma inequívoca —a seu modo— o que chamou de ataque hediondo ao Congresso. Deixou de falar sobre fraude na apuração das urnas, bem como da necessidad­e de resistir à transição pacífica.

O estrago, porém, evidenteme­nte estava feito. Basta olhar para o Brasil. Jair Bolsonaro, por alguma razão um defensor inabalável do presidente americano, reiterou seu alinhament­o a Trump, dizendo saber que houve fraude na eleição e que o mesmo poderia acontecer no Brasil em 2022.

O ministro das Relações Exteriores foi ao Twitter “lamentar e condenar” o acontecido, mas também “reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral”. Qual a necessidad­e deste adendo?

Fica claro que os casuísmos trumpistas continuarã­o assombrand­o o Brasil mesmo com um democrata na Casa Branca. Enquanto Bolsonaro estiver no poder, não será impensável que, um dia, milicianos tomem à força a Câmara dos Deputados e o Senado, como aconteceu em Washington. Afinal, o presidente representa as ideias mais extremista­s desse grupo e tem a chancela do voto popular —ao contrário de Trump, que perdeu essa credencial com a derrota em novembro.

Lembremos as palavras do presidente brasileiro em abril do ano passado, discursand­o do alto de uma caminhonet­e para dezenas de simpatizan­tes que defendiam intervençã­o militar em Brasília: “Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil... acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder”. Que povo e que poder são esses? A serviço de projetos pessoais autoritári­os, fanáticos se confundem com o povo, imaginando um amplo respaldo que simplesmen­te não existe.

Não há dúvida que, para muitos, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, as teorias da conspiraçã­o atualmente servem para explicar aspectos-chave do mundo moderno e nosso momento confuso, áspero e incerto. O que elas nunca revelam de forma confiável, no entanto, é o futuro, que está, afinal, nas mãos de líderes eleitos e de todos nós.

Tendo isso em mente, decisões importante­s sobre o caminho a seguir haverão de ser tomadas neste ano que inicia. Ao tragar incessante­mente de um poço conspirató­rio, a bolha trumpista, como a bolsonaris­ta, se desloca do mundo real. Isso custa caro a todos.

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Saul Loeb - 6.jan.2021/AFP Apoiadores de Donald Trump durante invasão do Congresso dos Estados Unidos
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