Folha de S.Paulo

Fim do auxílio emergencia­l tira R$ 32 bi mensais da baixa renda

Sentindo na pele que a retomada econômica é fraca, quem recebia o benefício se declara apreensivo

- Fernanda Brigatti e Tayaguara Ribeiro Colaborou Diego Garcia, do Rio de Janeiro

O fim do auxílio emergencia­l afetará, de uma vez, a vida dos brasileiro­s e a economia. Para quem recebeu o benefício —quase metade da população— e dependeu dele para o sustento, o ano começa com inseguranç­a.

O fim do auxílio emergencia­l vai mexer, de uma só vez, com avidadas pessoas e coma economia do país. O último crédito foi pago no dia 29 de dezembro, e os saques derradeiro­s ainda serão feitos ao longo de janeiro.

O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) deixou claro que não tem dinheiro em caixa para estender o benefício. Entre economista­s, não há consenso em relação à prorrogaçã­o e seus critérios. Uns se preocupam coma questão social e outros comas contas públicas, já deteriorad­as.

Quem dependeu do benefício para se sustentar ou viu a vida melhorar com o suporte na renda diz que o ano começa com inseguranç­a —e não é pouca gente. Foram 67,9 milhões de beneficiár­ios, 4 em cada 10 brasileiro­s em idade de trabalhar.

No decorrer de nove meses, foram pagos R$ 292,9 bilhões. Na prática, segundo dados da Caixa, deixam de ser injetados na economia dos estados R$ 32,4 bilhões por mês.

Os efeitos no dia adia de famílias e negócios, principalm­ente comércio e serviços, levarão um tempo para apare cernas estatístic­as, mas, para quem acompanha indicadore­s sociais, a perspectiv­a nãoé boa.

Como ainda não há garantia de uma retomada consistent­e na oferta de trabalho, a economista Diana Gonzaga, professora da UFBA (Universida­de Federal da Bahia), afirma que, sem um programa social, via transferên­cia de renda, ou um plano econômico, que incentive ageração de empregos, as desigualda­des regionais devem crescer.

O pagamento do auxílio emergencia­l foi especialme­nte relevante nos estados das regiões Norte e Nordeste.

“Essas regiões já vinham numa situação econômica mais frágil antes da pandemia, com desemprego alto e muita informalid­ade”, afirma. “Sem um plano de transição para o fim do auxílio, é muito provável que as crises sociais também se agravem.”

Quase 43% de todos os recursos do auxílio, cerca de R$ 125 bilhões, foram para o

Norte e o Nordeste. De acordo com Roberta de Moraes Machado, economista da UFPE (Universida­de Federal de Pernambuco), a distribuiç­ão do auxílio teve enorme impacto nessas regiões.

“São economias menos desenvolvi­das, com maior taxa de desalento ou desocupado­s, atividades baseadas essencialm­ente na informalid­ade e na baixa complexida­de”, diz.

As cinco primeiras parcelas do auxílio tiveram forte impacto sobre a geração de riqueza dessa parte do país. Contribuír­am, em média, com uma alta de 6,5% do PIB (Produto Interno Bruto) dos estados do Norte e Nordeste, de acordo com estudo dos economista­s Écio Costa, da UFPE, e Marcelo Freire, da Universida­de Federal Rural de Pernambuco.

No município de Santarém Novo, no Pará, os R$ 13 milhões pagos nos cinco primeiros meses respondera­m por 27,2% do PIB municipal pelas projeções dos pesquisado­res.

Ficou famoso o caso do comerciant­e Marinaldo dos Santos Cunha, 47 anos, dono de um açougue no centro do município paraense. Cunha mediu o efeito do auxílio emergencia­l na economia local em quilos de carne. Seu açougue chegou a vender o equivalent­e a um boi por dia durante a pandemia. Antes, era um boi por semana, contou à Folha.

O dinheiro inesperado levou ele e a esposa, Renata, a investir na abertura de uma farmácia. Agora, o município de pouco mais de 6.000 habitantes tem três drogarias. O casal também trocou de carro e comprou um terreno.

Marinaldo estima que nos próximos meses a vida vá voltar à rotina de antes, movida apenas pelo pagamento do Bolsa Família: quando o dinheiro é liberado, o comércio vende mais; passados uns dias, vende menos.

O economista da UFPE diz que,jáseanteci­pandoaofim­do benefício, famílias se prepararam e pouparam, mas a tendência, se o emprego não reagir mais depressa, é que o consumo caia em toda essa parte do país a partir de fevereiro.

“Estamos falando de queda na transferên­cia de renda aos mais pobres, o que conse

“O auxílio é uma contingênc­ia, mas o governo poderia ter encontrado outra forma de ajudar. A sensação é que a gente está completame­nte perdida

Stephanie Camargo, 24 estudante

“Antes da pandemia eu fazia diária quase todo dia. Quando teve o surto de Covid, perdi várias clientes. Todo o mundo ficou com medo de que eu pudesse ser uma ‘contaminad­ora’

Jaqueline Eustachio, 30 diarista

quentement­e reduz consumo, afetando o comércio e o setor de serviços”, diz. “Só se tiver retomada da empregabil­idade isso pode ser amenizado.”

Na região Norte, das 6,9 milhões de pessoas que receberam o benefício, 2,6 milhões já eram do Bolsa Família. No Nordeste, de 21,9 milhões de beneficiár­ios do auxílio emergencia­l, 10 milhões estavam no programa que atende famílias em extrema pobreza.

A economista Diana Gonzaga defende a necessidad­e de o governo agir para criar uma transição entre o auxílio e outro benefício, com um valor menor, com critérios de concessão mais seletivos, mas que dê um suporte enquanto a pandemia não arrefece.

Ela afirma que os pequenos sinais de melhora de índices econômicos, como o da criação de vagas formais ou o aumento da população ocupada, praticamen­te não chegaram ao Norte-Nordeste. Quase 70% dos empregos com carteira criados até novembro estão no Sul e no Sudeste.

Nos estados do Sudeste, porém, a situação ainda é incerta para muita gente. Cerca de 38,44% do total pago via auxílio emergencia­l, R$ 112,6 bilhões, vão deixar de entrar no bolso de 26,4 milhões de brasileiro­s de baixa renda.

A reportagem da Folha foi conversar com pessoas que estavam, na quarta-feira (6), na fila do restaurant­e popular Bom Prato, em Santana, na zona norte de São Paulo, que vende refeições a R$ 1, subsidiada­s pelo governo do estado.

Muitagente­dissequere­cebia o auxílio emergencia­l. Maria das Graças, 52 anos, moradora na Vila Albertina, na zona norte de São Paulo, era uma delas.

Há anos, trabalha como cuidadora de idosos, um dos principais grupos de risco da Covid-19. Justamente por isso, diz, não tem conseguido clientes ao longo da pandemia. Conta que muitas pessoas nessa faixa etária estão evitando contato com quem é de fora do circulo familiar.

Ela tem tentado trabalho em outras áreas, mas nada aparece. Mora sozinha, e o auxílio emergencia­l era a sua única fonte de renda. “Deveria continuar”, disse à reportagem. “Como a pessoa vai ficar

sem auxílio e sem emprego?”

Stephanie Camargo, 24 anos, também aguardava na mesma fila. Contou que está no último semestre do curso de administra­ção, mas sem aulas. Mor ade aluguel no mesmo bairro, co mamãe e uma irmã. A jovem e a mãe são autônomas —fazem terapia holística e mapa astral—, e a irmã está desemprega­da.

Durante a pandemia, o auxílio complement­ava a renda, já que perderam muitos clientes. Não sabe nem como vai pagara faculdade .“Nomeio de uma pandemia, com tanta gente desemprega­da, quem vai fazer mapa astral, terapia al terna tiva? Éa primeira co isa que as pessoas cortam ”, diz.

“O auxílio é uma contingênc­ia, mas o governo poderia ter encontrado out raforma de ajudar. Asensaçãoé que agente está completame­nte perdida.”

Mesmo as atividades mais tradiciona­is para os profission­ais de baixa renda ainda não voltaram ao ritmo pré-pandemia. Diarista é uma delas.

Jaqueline Eustachio, 30 anos, foi uma das profission­ais da área que sentiram a queda no volume de trabalho.

“Antes da pandemia eu fazia diária quase todo dia. Quando teve o surto, perdi várias clientes. Todo o mundo ficou com medo de que eu pudesse ser uma‘ contaminad­ora ’”, afirmou amoradora da Brasilândi­a, na zona norte da capital.

Ela mora com três filhos pequenos. “Acho que não deveria ter acabado [o auxílio] pois a pandemia continuanó­s, que somos de baixa renda, somos os mais afetados. Se não fosse o auxílio, eu teria passado necessidad­e”, disse.

“Ainda não sei como vai ser daqui para afrente, porque não consegui retomar minha renda completa, minhas diárias.”

Adriana Bomfim dos Anjos, 45, que também trabalha como empregada doméstica, sofre coma mesma angústia. Conta que já vinha equilibran­do as finanças mesmo com o auxílio.

A reportagem a encontrou na Ceagesp (Companhia de Entreposto­s e Armazéns Gerais de São Paulo), na região oeste. Ela tinha saído do Grajaú, no extremo sul da capital paulista, para recebera xepa.

No local, junto com cerca de outras cem pessoas, pegou um kit com duas sacolas de verduras, frutas e legumes, na quinta-feira (7), doados por comerciant­es que trabalhamn o Ceagesp. A doação ocorre semanalmen­te, desde outubro.

“Eu recebia o auxílio, me ajudava bastante e seria melhor que ainda continuass­e por um tempo”, disse Adriana.

Antes de pandemia, ela conta que trabalhava três vezes por semana. Agora, depende de uma diária acada 15 dias.

Quem busca emprego traça um cenário mais complicado e diz que ainda está difícil conseguir uma colocação.

No posto móvel do CATe (Centro de Apoio ao Trabalho e Empreended­orismo), que fica em frente ao Terminal Lapa, na zona oeste, Elena Maria dos Santos, 38 anos, aguardava na fila para verificar se existia alguma vaga.

Moradora de Itapevi, a auxiliar de limpeza recebeu o benefício desde o início da pandemia. “Eu esperava que continuass­em pelo menos mais algumas parcelas. Está difícil conseguir emprego”, diz.

Sem o auxílio emergencia­l, a rendado marido passa a sera única fonte para pagaras contas do casale seus dois filhos.

Na avaliação do economista José Márcio Camargo, da Genial Investimen­tos, o avanço das vacinas melhora as perspectiv­as para o primeiro trimestre e suaviza os efeitos do fim do auxílio na vida das pessoas e na economia como um todo.

Segundo ele, além de evitar medidas de restrição para a circulação de pessoas, o início da imunização permitirá a retomada na prestação de serviços para as famílias, contribuin­do para retomada do emprego, tanto formal quanto informal.

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Karime Xavier/Folhapress Pessoas aguardam em fila para receber kits com sacolas de verduras, frutas e legumes doados por comerciant­es que trabalham na Ceagesp, na zona oeste de São Paulo
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Fotos Karime Xavier/Folhapress Fila no restaurant­e Bom Prato em Santana, zona norte de SP. Boa parte dos clientes está desemprega­da e aproveita as refeições a R$ 1
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Posto móvel do CATe 1 cadastra desemprega­dos na Lapa, bairro da capital paulista; Adriana dos Anjos, empregada doméstica que ficou sem auxílio antes de recuperar todos os clientes, busca kit de alimentos no Ceagesp 2; a estudante Stephanie Camargo 3 , outra ex-beneficiár­ia, não sabe como pagar as contas ou se vai conseguir concluir o último semestre da faculdade
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