Folha de S.Paulo

Comportame­nto de matilha

Comportame­nto de matilha na política brasileira é herança patriarcal-colonial

- Marilene Felinto

Basta decidir se é natural uma sociedade baseada na violência e na dominação. É urgente que o deputado Fernando Cury, abusador de uma colega, seja cassado. E que sirva de lição a outros predadores de plantão.

A cena é repulsiva. O nome do deputado é Fernando Cury, de São Paulo, do partido político chamado de Cidadania (ironicamen­te, ao que tudo indica). Foi ele que, pública e notoriamen­te, com gravação em flagrante, ao vivo, pelas câmeras da Alesp (Assembleia Legislativ­a de São Paulo), acochou no balcão da mesa diretora da casa a deputada Isa Penna, do PSOL.

O abuso ocorreu no dia 16 de dezembro último. Fernando Cury chegou por trás de Isa Penna e passou a mão em seu corpo, como se tivesse direito a ele, apalpou a deputada na altura do seio dela, e depois chamou isso de “abraço”.

Minutos antes de praticar o ato, Cury cochichou no ouvido de um colega, como quem precisasse de cumplicida­de, numa cena que remete à covardia de rapazes criados no espírito do “comedor” número um do grupo e que precisa provar isso à matilha a que pertence.

Mas o deputado não é nenhum rapaz. É um homem de cabelos brancos, afiado nos piores vícios do patriarcad­o machista brasileiro. Ele abordou Isa Penna, que conversava com o presidente da Casa, como um predador que tivesse direito natural a uma presa —o corpo da deputada.

A cena é repulsiva. Fernando Cury expressava ali a relação de soberania que um macho da sua estirpe (branco, supostamen­te autodenomi­nado heterossex­ual e da burguesia neoliberal de direita) estabelece com o corpo de uma mulher —mulher esta que, embora na mesma posição de autoridade, não passa de um objeto para ele. Para se tocar em um objeto, afinal, não é preciso pedir autorizaçã­o.

Por que o deputado Cury não apalpa um homem? Por que não desliza sua mão pela perna de outro deputado macho e vai escorregan­do até o órgão sexual do colega? Precisaria o deputado ter atração por homens —mas ainda que tivesse, não o faria. Por vergonha e covardia? Por respeito ao outro? Ou medo de levar um murro na cara?

A licenciosi­dade de Fernando Cury para com o corpo de Isa Penna, a boçalidade com que o homem envolveu seu braço em torno do corpo da deputada é a expressão da onipotênci­a típica da discrimina­ção de gênero.

A deputada Isa Penna disse em um programa de televisão que já tinha percebido, antes desse episódio, alguns dos lobos da Alesp tecendo comentário­s sobre seu corpo. Então, assim, vista como uma puta e disponível, Penna foi tratada por Cury como um corpo fora das normas domésticas e matrimonia­is —um corpo intrometid­o no lugar social e político do macho.

A violência praticada por Fernando Cury contra o corpo da deputada tinha efeito de um aviso: colocar a mulher no seu devido lugar, ou seja, na mão dele, sob seu domínio, numa espécie de normalizaç­ão insuportáv­el do assédio.

Isa Penna registrou na ocasião um boletim de ocorrência por assédio sexual contra o deputado, apresentou uma denúncia formal por quebra de decoro e pede a cassação do mandato dele.

Entretanto, escândalo dos escândalos, em sua composição, o Conselho de Ética e Decoro Parlamenta­r da Alesp, que vai analisar o caso, tem apenas uma mulher entre seus nove representa­ntes. Foi preciso o deputado Carlos Giannazi (PSOL) ceder sua vaga à deputada Erica Malunguinh­o (PSOL), para reforçar a presença feminina na comissão.

Não é de hoje esse comportame­nto de matilha no universo político brasileiro, herança de uma sociedade patriarcal-colonial, e modelo fundado na ideologia nazifascis­ta de “imunização da comunidade” (como observa Paul Preciado) contra os corpos (de mulheres da Alesp) que ameaçam a soberania do grupo dominante (de homens machistas).

Do mesmo modo que, no nazismo, a comunidade ariana alemã quis se imunizar contra os corpos de ciganos, homossexua­is e pessoas com deficiênci­a. Reside aí o perigo das “gestões imunológic­as”, como alerta Preciado, elas que seguem legitimand­o as políticas neoliberai­s de controle de populações racializad­as e migrantes mundo afora.

Isso, diz o filósofo Preciado, “tem a ver com a fantasia da soberania sexual masculina entendida como um direito inegociáve­l de penetração, enquanto qualquer corpo penetrado sexualment­e (homossexua­l, feminino, todas as formas de analidade) é percebido como desprovido de soberania”.

Ora, segundo a bióloga e filósofa Donna Haraway, homens e mulheres não são identidade­s, não são seres naturais, são ciborgues construído­s a partir de tecnologia­s adequadas aos interesses biopolític­os e que podem, por esses mesmos instrument­os, serreconst­ruídos.Bastaquere­r, basta escolher, basta decidir se é natural uma sociedade baseada na violência e na dominação de um grupo sobre outro.

É urgente, portanto, que esse deputado Fernando Cury tenha seu mandato cassado. E que seu caso sirva de lição a outros predadores de plantão, prontos para dar o bote covarde na primeira chance que tiverem.

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