Folha de S.Paulo

Despedida de casal de idosos com Covid-19 comove médicos

Maria Helena sobreviveu, o marido não; em hospital de SP, 40 casais já foram internados juntos

- Cláudia Collucci

Em dezembro, uma cena emocionou a UTI do Hospital do Servidor Público Estadual (SP): um casal se despediu, com lágrimas, antes de ser intubado. Maria Helena, 75, sobreviveu ao vírus. Seu marido, Vencri Guze, 79, não.

No dia 15 de dezembro passado, uma cena emocionou a equipe da UTI do Hospital do Servidor Público Estadual (SP) destinada à Covid-19: um casal de idosos se despedia, de mãos dadas e lágrimas nos olhos, antes de ser intubado. Primeiro foi ela, às 10h. Depois, ele, às 15h.

Vencri Rodrigues Guze, 79, e a mulher, Maria Helena, 75, tinham sido internados no dia 10 de dezembro por complicaçõ­es da doença. Ela, com 60% do pulmão comprometi­do pela infecção. Ele, com 50%.

A reviravolt­a na vida da família Guze começou logo após um fim de semana em Bertioga, litoral de SP, na casa de praia de um dos filhos, o engenheiro agrônomo Ricardo Guze, 43.

“No dia 4 de dezembro, eles passaram o dia inteiro na praia, de mãos dadas na água. Parece até que foi uma despedida”, lembra ele.

A cumplicida­de do casal chamava a atenção de todos. Vencri Guze era viúvo e tinha quatro filhos quando se casou com Maria Helena, em 1970. Com ela, teve mais dois filhos: Ricardo e Alexsandro, 48.

“Eram apaixonado­s um pelo outro. Uma moça na praia até comentou: ‘nossa que lindo! Quando eu ficar velhinha, quero ficar assim como vocês’”, conta Ricardo Guze.

No sábado à noite, a família foi à festa de aniversári­o de alguns parentes. “Sempre usando máscara e passando álcool gel”, reforça o engenheiro.

No domingo, de volta a Osasco, região metropolit­ana de SP, onde moram, almoçaram em um restaurant­e.

Na segunda (7), Maria Helena queixou-se de dores no corpo. O filho a levou a um hospital da cidade. “A médica fez uma radiografi­a do pulmão e disse que não havia sinais de Covid. Receitou antibiótic­o e anti-inflamatór­ios.”

Na terça, o pai também começou a sentir sintomas gripais. Eles foram até o posto de saúde, fizeram um teste rápido de Covid, que deu negativo.

Na quinta, ambos pioraram. “Minha mulher me ligou no serviço dizendo que meus pais não estavam bem. Quando cheguei em casa, assustei. Minha mãe não estava respirando direito, meu pai estava muito abatido. Ele nunca foi de se entregar. Era um cavalo de forte, brincava que só morreria aos 104 anos.”

O filho os levou para o Hospital do Servidor Estadual, em São Paulo. Maria Helena é professora aposentada. Assim que chegaram, foram colocados no oxigênio enquanto aguardavam o resultado dos exames. A tomografia logo mostrou que ambos já estavam com os pulmões bem comprometi­dos, e que precisavam ser internados.

“Despedi do meu pai e da minha mãe. Ele me disse: ‘Deus te abençoe, meu filho, obrigado por tudo o que você fazendo por nós’. Fui embora para casa. A sensação é de sequestro. Você não pode ver, você não tem contato. Você fica o dia inteiro esperando uma ligação desesperad­o para saber como o seu pai e sua mãe estão”, conta ele, aos prantos.

A apreensão aumentou na segunda (14), quando recebeu um telefonema do hospital avisando que a mãe seria intubada.

“Perguntara­m se eu queria falar com ela pela última vez. Caiu o meu chão, mas tentei ser forte. Falei pra ela: ‘mãe, vão intubar a senhora, mas vai ser melhor’. Ela disse. ‘Vai dar tudo certo, meu filho’”.

Ao desligar o telefone, Guze conta que entrou em desespero. “Comecei a chorar muito, saí do serviço e fui pra casa muito mal. Minha pressão foi a 25 por 11. Me deram um calmante tarja preta. Só à noite me contaram que tinham intubado meu pai também.”

Caçula da família, o engenheiro diz que sempre foi muito apegado aos pais. “Chegava a dormir no meio deles na cama. Tudo o que eu fazia era com eles, para eles”, diz, casado e pai de uma menina.

Nos dias seguintes, as notícias eram as de que os pais estavam se recuperand­o. Seguiam intubados, mas estáveis.

Na segunda (21), os médicos informaram que Maria Helena havia saído da intubação, mas que o seu marido apresentav­a febre e complicaçã­o renal. Na terça, o idoso sofreu um choque séptico e morreu.

“Tive que reconhecer o corpo no necrotério. Estava numa geladeira grandona, em um saco fechado. Eu abri o saco, abracei e beijei o meu pai. Conversei muito com ele. Tudo o que não podia fazer, eu fiz”, conta Guze, que já teve Covid em abril, foi internado e ficou dois dias no respirador.

A cerimônia antes da cremação durou 15 minutos. “É aquele momento que a gente percebe que não é nada, que a gente não leva nada dessa vida.”

Faltando dois dias para o Natal, ele só pensava em como dar a notícia da morte do pai para a mãe, ainda internada e muito debilitada.

“Mas antes disso a médica ligou, dizendo que, de alguma forma, minha mãe já estava sabendo. Ela contou que o meu pai [depois de morto] tinha ido se despedir dela. Não sei se você acredita nessas coisas.”

Maria Helena teve alta dia 29 de dezembro. “Ela ficou muito dilacerada. A Covid acabou com ela, foi como se tivesse passado um trem em cima dela. Chegou em casa cheia de hematomas. Eu dava banho nela, limpava quando ia ao banheiro, trocava fraldas. Ela virou um bebê.”

Hoje, já voltou andar, se alimenta e toma banho sozinha, mas ainda sente muitas dores no corpo e chora a morte do marido. A família tenta poupá-la do assunto.

O casal completari­a 50 anos de união no dia 25 março. A família planejava uma grande festa para comemorar a data e o aniversári­o do patriarca, que completari­a 80 anos no próximo dia 2 de fevereiro.

Segundo o médico intensivis­ta Ederlon Rezende, que dirige a UTI de adultos do Hospital do Servidor Estadual, só na instituiçã­o, ao menos 40 casais foram internados simultanea­mente desde o início da pandemia de Covid-19.

“Esses casais separados pela Covid é uma das coisas mais marcantes para mim dessa pandemia. O lado mais duro é que raramente voltam os dois para casa. A doença é mais cruel com os homens. Não tem final feliz. Muitas vezes, quem sobrevive diz que preferiria ter morrido no lugar do outro.”

“Esses casais separados pela Covid é uma das coisas mais marcantes para mim dessa pandemia. Raramente voltam os dois para casa. Não tem final feliz. Muitas vezes, quem sobrevive diz que preferiria ter morrido no lugar do outro

Ederlon Rezende médico intensivis­ta do Hospital do Servidor Estadual

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Vencri Guze, 79, se despede da mulher, Maria Helena, 75, antes de serem intubados
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Arquivo pessoal. O casal Vencri Guze, 79, e Maria Helena, 75; ela sobreviveu a Covid, ele não

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