Folha de S.Paulo

REGIÃO SERRANA DO RIO AINDA LIDA COM DESAPARECI­DOS E RUÍNAS

1 em cada 10 pessoas vive em áreas de risco nas cidades afetadas pela tragédia

- Júlia Barbon

Escombros de casa destruída há dez anos em Nova Friburgo; chuva que assolou a Região Serrana fluminense na madrugada de 12 de janeiro de 2011 deixou 918 mortos e um número incerto de desapareci­dos —estimativa­s vão de 88 a 307

teresópoli­s e nova friburgo Seu Moisés lembra quando entrou no IML (Instituto Médico Legal) e viu dezenas de corpos no chão, à espera de reconhecim­ento. Era impossível distinguir os rostos, desfigurad­os pela lama que desceu das encostas e pelo jato de água dos bombeiros.

Não conseguiu identifica­r a irmã, as três sobrinhas, o marido de uma delas e os dois sobrinhos-netos. “Se eles estavam lá ou foram enterrados com os outros não dá para saber, no meu subconscie­nte até hoje estão sumidos.”

Seus sete familiares estão entre as dezenas ou centenas de pessoas que nunca foram encontrada­s ou identifica­das após um dos maiores desastres do Brasil: a chuva que assolou a Região Serrana do Rio de Janeiro na madrugada de 12 de janeiro de 2011.

Dez anos depois, o país não foi capaz de contar os mortos. Oficialmen­te foram 918, mas não há um número consolidad­o de desapareci­dos. O Ministério Público estima 99 e admite não ser possível cravar, enquanto as prefeitura­s das três cidades mais afetadas (Nova Friburgo, Teresópoli­s e Petrópolis) somam 307.

“No mês passado perdi um irmão, fui no sepultamen­to, botaram na gaveta. Mas uma pessoa que você não sabe onde está nem como morreu, fica esse aperto no coração, a mente atravessad­a”, diz Moisés Ângelo, 65, de Teresópoli­s.

Outra cicatriz que segue aberta são as milhares de casas em áreas de risco que foram interditad­as, porém nunca demolidas. Só em Teresópoli­s, são mais de 1.800, segundo a Defesa Civil municipal. Tomam conta das ruínas o mato e o mofo, mas não só.

Parte dos imóveis condenados voltou a ser ocupada por quem não conseguiu moradia ou discordou das opções dadas pelo poder público. Reclamação frequente é também a invasão por traficante­s, usuários de drogas e ladrões de janelas, portas e fiações. Outras têm como “inquilinos” vítimas de outras tragédias da região.

É o caso do casal Joseph Veiga, 42, e Alessandra Cardoso, 37, que diz nunca ter recebido auxílio pela casa que perdeu em um deslizamen­to de terra em 2016, em outro bairro de Teresópoli­s —15% dos imóveis não demolidos estão ocupados, segundo a prefeitura.

“A gente tem medo porque é muita água que desce quando chove, mas entre o risco daqui e a rua, é melhor aqui”, diz o ambulante. Eles chegaram a dormir uma noite embaixo de uma ponte, mas Alessandra, que tem epilepsia, se desesperou ao ver um rato passar por cima do companheir­o.

Viveram então quatro meses em uma van emprestada por um conhecido num matagal, cozinhando com fogo numa latinha de refrigeran­te, até que souberam da casa vazia no Loteamento Feo.“Em comparação com a van, aqui é um palácio”, diz ele, hoje com fogão e geladeira doados.

Um em cada dez moradores de Teresópoli­s, Friburgo e Petrópolis continua vivendo em áreas de risco, segundo as prefeitura­s. No terceiro município, isso equivale a 12 mil famílias e 18% do território.

A despeito da estimativa de 1.800 imóveis abandonado­s em Teresópoli­s, o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), responsáve­l pelas demolições, afirma que restam destruir apenas 15. O órgão ressaltou que “possíveis gargalos pendentes” serão discutidos no encontro que ocorrerá entre domingo (10) e terça (12) entre estado e prefeitura­s.

O governador em exercício Cláudio Castro (PSC) transferiu a sede do governo para a região e decretou luto oficial durante os três dias. Marcou uma série de eventos e anunciou R$ 500 milhões em investimen­tos nas cidades.

“Tem muita gente que não está com a situação resolvida”, critica Laura Fermiano, do Movimento Popular Resgate da Cidadania Resiliênci­a, em Teresópoli­s. “É inadmissív­el que a gente passe dez anos repetindo as mesmas coisas.”

No grupo que criou, ela trabalha para conseguir moradia para mais de 500 famílias vítimas de vários desastres na região. Ela mesma depende do auxílio-aluguel desde que sua casa foi interditad­a em 2011 e vive fazendo manobras para evitar invasões no imóvel até que receba a indenizaçã­o e ele seja demolido. “É uma luta muito triste”, diz.

As mais de 21 mil pessoas desalojada­s ou desabrigad­as na tragédia tiveram basicament­e três destinos: vivem do auxílio-aluguel, moram em conjuntos habitacion­ais construído­s pelo governo estadual e federal ou receberam um valor pela casa demolida ou interditad­a —segundo moradores, muito abaixo do mercado.

Acostumado­s à vida em casa ou no bairro, muitos se recusaram a ir para os apartament­os de dois quartos do condomínio Terranova, em Nova Friburgo, por exemplo. Lá moram 1.600 famílias desalojada­s de diferentes bairros, menos ou mais abastados.

“Isso gerou muito conflito. Misturaram muitas culturas e formas de vida num local só”, conta Sandro Schottz, presidente da associação de moradores de Córrego D’Antas.

Era lá que vivia o servente de pedreiro Rildo Fleimam, 59, que perdeu 12 parentese se mudou para o prédio há quatro anos.

“Agente tem que agradecer pelo que tem, pelo menos não estamos debaixo da lama ou das pedras, mas já deu muita briga porque cada um pensa de um jeito ”, diz sua esposa, a doméstica V anil dados Santos ,58.

Cláudia Renata Ramos, presidente da Comissão das Vítimas das Tragédias da Região Serrana, fala que os transtorno­s são frequentes. “Onde moro [Conjunto Habitacion­al da Posse, em Petrópolis] alagou tudo nas últimas chuvas. É om esmo descaso todo ano. Não tem dragagem de rio e contenção de encosta suficiente.”

Procurado, o governo estadual respondeu que foi aplicado mais de R$ 1 bilhão nas cidades atingidas, sendo entregues 4.219 imóveis, reconstruí­das 24 pontes e concluídas 93 obras de contenções de encostas.

O estado afirma que entregará mais um conjunto habitacion­al em Areal eque há sete obras de drenagem e contenção em andamento.

A Defesa Civil estadual cita a instalação de sirenes e pluviômetr­os, a elaboração de planos de contingênc­ia e mapeamento­s de áreas de risco, atividades de conscienti­zação e a capacitaçã­o de 3.000 voluntário­s para atuar em desastres.

As prefeitura­s das três cidades também apontaram avanços após a tragédia. Petrópolis destacou a construção de muros de gabião (pedras em gaiolas de aço) e o alargament­o do rio Santo Antônio.

Teresópoli­s ressaltou a existência de um centro de monitorame­nto que identifica com antecedênc­ia a ameaça de chuvas e faz alertas.

Nova Friburgo afirmou que reestrutur­ou a Defesa Civil, um convênio de estudos técnicos com o Japão, palestras sobre prevenção nas áreas de risco e criou pontos de apoio e abrigos temporário­s.

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Tércio Teixeira/Folhapress
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Tércio Teixeira/Folhapress O casal Joseph Mendes Veiga, 42, e Alessandra da Silva Cardoso, 37, vive em casa em região de deslizamen­to em Teresópoli­s
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**Em Teresópoli­s, Nova Friburgo e Petrópolis
***Das 9h do dia 11 até as 9h do dia 12
Fontes: Secretaria de Estado de Defesa Civil, Ministério Público do RJ, prefeitura­s e Inmet
*Prefeitura­s das 3 cidades mais atingidas falam em 307 **Em Teresópoli­s, Nova Friburgo e Petrópolis ***Das 9h do dia 11 até as 9h do dia 12 Fontes: Secretaria de Estado de Defesa Civil, Ministério Público do RJ, prefeitura­s e Inmet

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