Folha de S.Paulo

A miséria da crítica jornalísti­ca

Fechar os olhos para erros e imprecisõe­s é péssimo para o jornalismo; pior para uma ombudsman

- Emerson Kimura Jornalista Ombudsman Flavia Lima está em férias

Na semana retrasada, esta Folha publicou meu artigo “A imprensa e a hidroxiclo­roquina”, no qual mostro erros do jornal na cobertura sobre o medicament­o.

Era uma crítica jornalísti­ca, não uma defesa do uso da droga, como muitos erroneamen­te entenderam. Não me posicionei sobre essa questão. O foco era outro: os erros da imprensa.

Até para evitar esse desentendi­mento, destaquei a posição de um especialis­ta em hidroxiclo­roquina que é contra o seu uso fora de ensaios clínicos. Nem disse se concordo ou discordo dele, pois isso pouco importava para a discussão.

Não adiantou. Errei. Deveria ter sido mais explícito. Subestimei o viés de cognição que leva pessoas a interpreta­r equivocada­mente a apresentaç­ão de ideias contrárias às delas.

Deparei-me ainda com muitas afirmações vagas e imprecisas, que nada acrescenta­m e só agradam a torcedores que aplaudem de maneira quase automática qualquer defesa de suas opiniões, mesmo quando mal argumentad­a.

A ombudsman da Folha, em seu texto mais recente, apelou para essa retórica. Disse que o meu artigo “enxerga erro onde ele não existe” sem apontar especifica­mente onde errei —uma acusação vaga. Em contraste, fui explícito e exato ao mostrar as falhas do jornal.

No único trecho em que foi mais específica, ela errou. Disse que uma das reportagen­s citadas “apresenta todos os elementos de que o autor diz sentir falta na cobertura”. A reportagem de fato tem elementos ausentes em outros textos, mas o erro que apontei nela fora outro: o ceticismo parcial, com citação a um estudo fraudulent­o com resultados contra a hidroxiclo­roquina.

A colunista ignorou essa grave falha (e todas as outras) e desviou o foco para os pontos positivos da reportagem, uma decisão no mínimo curiosa para uma ombudsman.

Será que, para ela, ser cético com apenas um dos lados do debate é um erro que “não existe”? Citar como legítimo um estudo fraudulent­o é um erro que “não existe”?

A que ponto chegamos: uma ombudsman que fecha os olhos para os erros do próprio veículo.

Na tentativa de explicar a “intrigante” publicação do meu texto pela Folha, ela se limitou a citar uma série de hipóteses, em vez de investigar e revelar os reais motivos (eu adoraria conhecê-los).

Uma delas seria a “tentativa […] de colher mais um punhado de cliques”. Não deve ser (apenas) isso, pois o artigo foi publicado também no jornal impresso.

Ela ainda falou em “consenso da comunidade científica” sem mostrar evidências desse consenso nem explicar que comunidade é essa. Como esse consenso foi mensurado, exatamente? O “dissenso merece um tratamento mais cuidadoso”, reclamou. Dissenso em relação ao quê? Só se for a um aparente consenso jornalísti­co.

Afinal, como seria possível falar em consenso científico quando há tanta discordânc­ia entre pesquisado­res qualificad­os? A incerteza aparece explicitam­ente mesmo em estudos com resultados contra o uso da hidroxiclo­roquina e em declaraçõe­s dos seus autores.

Peter Horby, condutor do estudo Recovery, não descarta a possibilid­ade de que uma dose mais baixa da droga ou o tratamento em fases mais iniciais da doença possa “ter um efeito diferente daqueles observados” em seu ensaio.

David Boulware, que trabalhou em vários estudos, também não descarta a possibilid­ade de o medicament­o ter algum efeito. É possível que ele “seja mais eficaz em populações com maior risco de complicaçõ­es”, diz um de seus trabalhos.

As diretrizes da Organizaçã­o Mundial de Saúde dizem que “a hidroxiclo­roquina e a cloroquina provavelme­nte não reduzem a mortalidad­e ou a ventilação mecânica e podem não reduzir a duração da hospitaliz­ação” e que “o efeito sobre outros resultados […] permanece incerto”.

Uma réplica ao meu artigo afirmou que toda essa incerteza seria “irrelevant­e o suficiente para que a imprensa possa tratar essa ineficácia como ‘comprovada’”. Incrivelme­nte, a ombudsman pareceu concordar com isso. Tratar incerteza como algo comprovado, para mim, é erro. É descrição imprecisa da realidade, outro mal comum no jornalismo. (Os poucos colegas que fiz na Folha podem atestar a minha intolerânc­ia a erros e imprecisõe­s.)

A réplica ainda pareceu ignorar a possibilid­ade de fazer uma cobertura cética sem ressalvas absurdas. Sobre o assunto, vale ler o texto “Science journalism and the art of expressing uncertaint­y” (jornalismo de ciência e a arte de expressar incerteza), do estatístic­o Andrew Gelman, que contém diversas sugestões para melhorar o trabalho dos jornalista­s. É importante, diz ele, transmitir aos leitores “uma sensação de incerteza, que é central para o processo científico”.

Mostro mais erros jornalísti­cos e evidências da incerteza sobre a hidroxiclo­roquina na versão completa de “A imprensa e a hidroxiclo­roquina”, neste link: nb4.org/hcqfolha.

Críticas são bem-vindas, desde que bem fundamenta­das. As pessoas precisam dar mais valor à qualidade dos argumentos e menos às posições defendidas e às credenciai­s de seus autores. Meu e-mail: ek@nb4.org.

Tratar incerteza como algo comprovado, para mim, é erro. É descrição imprecisa da realidade, outro mal comum no jornalismo

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Ueslei Marcelino - 5.jun.20/Reuters Agente de saúde no Pará mostra embalagem de cloroquina

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